Quem é Aiden Pearce?
Com a chegada de Watch Dogs 2, voltamos ao passado e lançamos um olhar cuidadoso sobre o protagonista do primeiro Watch Dogs, lançado em maio de 2014, para entender por que Marcus Holloway e a São Francisco de Watch Dogs 2 são tão vibrantes.
Em games com foco na história as missões são direcionadas pelo roteiro e, tal qual um filme, as decisões e ações do personagem costumam estar de acordo com o que foi estabelecido quando este foi construído.
Um exemplo simples é o caso de John Marston de Red Dead Redemption. Marston é um ex-mercenário que largou mão da vida bandida (sorry) para construir uma família, mas é forçado a voltar para a ação depois que sequestram sua mulher e filho.
Com base no fato de que Marston abandonou a vida de mercenário e arrependeu-se dos crimes cometidos, sabemos que ostentar um comportamento desregrado no velho oeste é totalmente incoerente com a construção do personagem (muito embora o game te dê liberdade pra agir da forma que melhor entender). As situações se apresentam e o comportamento que mais se adapta com o personagem é o de sempre ajudar os NPCs: ele abraça a causa em uma revolução no México, protege freiras, caça foras-da-lei, faz papel de vaqueiro no Rancho McFarlane e salva putas de serem esfaqueadas no melhor easter egg do jogo.
Marston sempre quer ajudar. Afinal, ele busca redenção pelo passado de mortes e toda sorte de problemas causados. E enquanto ajuda transeuntes, John Marston parte em busca dos seus antigos companheiros do passado, uma caçada que desenha a história principal do jogo.
Corta pra Chicago de um futuro próximo.
Se você jogou Watch Dogs, certamente tem motivos pra se sentir um pouco frustrado com o game.
A famosa polemica do downgrade; a ausência de mecânicas simples como descer escadas; o fato do personagem ser inalcançável quando se está na água e aquela mecânica manjadíssima dos games da Ubisoft de desbloqueio de áreas através de torres (argh) podem ser o motivo para más lembranças de um game que prometia ser incrível.
Eu também tive essas experiências ruins, mas dei um jeito de contornar os problemas de jogabilidade do game, colocando uma certa dose de roleplay. Oras, se o game não sabe lidar com um fugitivo capaz de pilotar uma lancha, vamos então fugir a pé ou de carro/moto. Talvez o protagonista tenha uma certa superstição/TOC que o impeça de descer escadas com a mesma facilidade que as sobe.
Afinal ter que hackear terminais do ctOS para desbloquear novas áreas (e novas missões) não é tão desinteressante se você consegue imaginar que Aiden Pearce é um louco observador da vida alheia (de verdade). E precisar imaginar essas coisas tem tudo a ver com o maior problema de Watch Dogs, que faz com que o downgrade pareça uma excelente característica do game.
Watch Dogs é um game peculiar. Toda a mecânica de hacking e invasão de câmeras é excelente, além de contar com um sistema de combate e stealth bem bacanas (o ataque corpo a corpo de Aiden é animal).
Contudo, é quando olhamos pro personagem principal da nossa aventura que as coisas ficam bem complicadas.
Vejamos… a construção inicial do personagem é simples:
Aiden Pearce é um hacker que comete alguns cyber crimes no estilo Peter Pan. Um dia ele e seu parceiro roubam uma grana da pessoa errada e a retaliação sofrida por Aiden resulta na morte de sua sobrinha, fazendo com que o protagonista inicie uma caçada contra aqueles responsáveis pela tragédia.
O roteiro deixa claro que a irmã de Pearce é alguém importante pra ele, assim como sua sobrinha. Ela e os filhos são o único fiapo de família de Aiden e, portanto, são as pessoas que fazem com que ele tenha os pés no chão e conecte-se com a realidade, já que no fim das contas ele é um “virjão” que não sai da frente do computador.
A intenção do roteiro certamente foi estabelecer um motivador pra todas as ações de Aiden, jogando nosso “ráquer-do-bem” em uma cruzada atrás de justiça (ou vingança?). Mas a pergunta que fica é: funciona? Resposta: Não.
O fio condutor da história de Watch Dogs é a caçada de Aiden Pearce ao responsáveis pela morte de sua sobrinha. E no contexto dessa busca temos as missões principais onde Pearce vai descobrindo quem são seus inimigos: um velhote mega poderoso no submundo do crime (e influente politicamente na cidade) e um líder de gangue hacker (!), a corporação de segurança Blume e os responsáveis pelo ctOS.
Até aqui não existe nada de errado com Aiden, que movido pela vingança ele vai atrás dos responsáveis.
O problema começa quando Aiden comporta-se como um vigilante nas horas em que não está exercitando sua vingança, impedindo assaltos e invadindo esconderijos de gangues. Esse aspecto da personalidade do personagem é exacerbado durante a campanha de Watch Dogs, chegando ao ponto de Pearce parecer ser uma espécie de Batman/Rosrchach com recursos financeiros limitados.
Veja esse trecho do game, por exemplo (não há spoilers, se você não jogou):
https://www.youtube.com/watch?v=uLTZusoN9E0?t=11m30s&showinfo=0
Esse vídeo que ilustra bem dois comportamentos característicos de Aiden Pearce: combater o crime sem qualquer motivo justo para tanto e não tirar a fantasia de super-herói nunca. Afinal, quem é que vai ao aniversário do sobrinho e, além de não levar presente, usa a mesma vestimenta de vigilante?
Quanto à mecânica do comportamento dentro do contexto do game, nós somos incentivados a ir atrás dos crimes, existindo uma evolução da reputação de Aiden a cada “boa ação” realizada. Além disso, os jornais falam cada vez mais sobre a ação do vigilante, que é gradativamente mais reconhecido pela população nas ruas (o contrário também acontece, com Aiden ganhando má reputação a cada civil morto ou machucado). Também o próprio ctOS monitora a todo momento a população, prevendo a ocorrência de crimes com base no comportamento dos cidadãos, o que se encaixa perfeitamente no sub-texto proposto pelo game.
Mas ainda que isso funcione em termos de gameplay, eu repito, não vi nenhum motivo razoável pra um cara normal sair pelas ruas procurando pessoas em perigo para ajudar.
Em momento algum Aiden Pearce decide que precisa combater o crime através de seus poderes de hacker. Não houve uma cena com a célebre frase “grandes poderes trazem grandes responsabilidades” ou qualquer coisa do gênero, que apresentasse mesmo que de forma simples a motivação do personagem. Ou seja, Aiden é uma contradição ambulante! Foi aí que eu precisei preencher os espaços com a minha própria mitologia.
Aiden Pearce é louco.
Eis o que percebi: o game não diz isso explicitamente, mas houve um evento que mudou completamente a forma como Pearce vê o mundo, tornando-o uma espécie de anti-herói, um vigilante que nunca tira o casaco:
https://www.youtube.com/watch?v=zE2UguIzGd0&showinfo=0
Do meu ponto de vista e analisando o comportamento do personagem, posso afirmar que após a morte de sua sobrinha, Aiden Pearce ficou louco. Simples assim. Não conseguiu segurar a onda e, sobrecarregado pela responsabilidade da morte da Lena, quebrou. Afinal loucura é como a gravidade: pra algumas pessoas, basta um empurrãozinho. ¯\_(ツ)_/¯
Buscar vingança resolvendo um assunto pessoal é muito diferente de sair descendo o cacete em bandidos de esquina desconhecidos para “fazer justiça” (aspas gigantes aqui, por favor).
Mas quando eu percebi que Aiden não está em seu melhor juízo, tudo se encaixou. Ele fala sozinho, escuta conversa alheia, bate em desconhecidos, acha que é policial, invade a privacidade das pessoas (em suas próprias casas) e, a cereja do bolo, não troca de roupa. Portanto ele realmente pensa que é um super-herói e tem uma noção de justiça que o obriga a tomar atitudes com o intuito de limpar a cidade.
Só que Chicago não é Gotham City.
Não existem supervilões em Chicago que possam justificar a existência de um vigilante. Nesse aspecto, um Harvey Dent do universo Nolan faria uma limpeza muito mais eficiente, sem qualquer necessidade da “fome por justiça” do Aiden Pearce.
No fim das contas, assumir que a insanidade de Pearce foi o mecanismo de fuga utilizado pelo personagem pra não enfrentar a realidade em que ele próprio é o responsável pela morte da sobrinha, transforma a experiência de Watch Dogs bem mais palatável, inclusive dando alguma substância a um dos mais objetivamente desinteressantes personagens já criados nos vídeo games capaz de puxar para baixo a média final do jogo.
E considerando tudo isso, não foi difícil tomar a derradeira decisão do game: