Análise Chicken Police – Paint it RED! (PS4)
Chicken Police – Paint it RED! combina a estética de visual novels a uma história policial noir bem escrita e atuada com protagonistas únicos.
O estilo noir teve o seu período de ouro nos EUA nas décadas de 40 e 50 e filmes policias de suspense como A Marca da Maldade, de Orson Welles, marcaram época e moldaram uma nova geração de cineastas, escritores e artistas no geral e apesar desse auge ser parte do passado é possível sentir o peso dessa influência em obras como Onde os Fracos Não Têm Vez, Sin City e Grim Fandango.
A bem da verdade toda a estética noir foi muita influenciada pelo Expressionismo Alemão da década de 20, onde a iluminação (ou a falta dela) era usada para trazer a tona os sentimentos sombrios dos personagens ou o seu declínio frente a sociedade.
Além disso, o noir também se vale muito da jornada do herói, onde um protagonista desacreditado ou comum embarca em uma aventura, quase sempre contra sua vontade, confronta seus defeitos e ao aprender com os próprios erros consegue chegar ao final da jornada e conquistar a redenção ou um prêmio.
A grande diferença entre a jornada do herói clássica de Campbell e a do protagonista noir é que normalmente o segundo tem moral ambígua, é mais realista ou corrupto e acredita quase sempre que os fins justificam os meios, muito mais próximo de um anti-herói.
Combine esses elementos a um roteiro fortemente influenciado pela obra de Raymond Chandler, uma dublagem espetacular, gráficos surreais e o resultado é Chicken Police – Paint it RED!, um visual novel com elementos point ‘n click em que o jogador se vê envolvido em uma trama de mistério, assassinato, preconceito e traição, tudo isso temperado por um humor cínico e protagonistas animais. Literalmente.
Todos personagens do game são animais antropomorfizados, com corpo humano e cabeça de um animal, o que proporciona além de um visual único, diálogos inusitados, hora os personagens se comportando como gente, hora deixam o instinto falar mais alto.
Desenvolvido pelo estúdio The Wild Gentlemen e publicado pela HandyGames, subsidiária da THQ Nordic, Chicken Police foi lançado em 05 de novembro de 2020 e está disponível para PlayStation 4, Xbox One, Nintendo Switch e para PCs no Steam e GOG.
Infelizmente o game não possui legendas em Português do Brasil, sendo então necessário um bom entendimento da língua inglesa para aproveitar todo o seu potencial narrativo e isso pode ser um problema grave para muitos.
Pintando em vermelho
A construção em preto e branco, o jogo de luz e sombras característicos da estética noir, as poucas inserções de cores para evidenciar itens e os personagens construídos de forma foto realista já destacam Chicken Police da grande maioria dos jogos lançados este ano, mas os pontos altos do título vão para a sua história e dublagem magníficas.
A narrativa segue Sonny Featherland, um detetive do departamento de polícia da cidade de Clawville há 20 anos, e que já fez parte do famoso duo chamado Chicken Police, mas que devido a vários problemas envolvendo família, alcoolismo e insubordinação está afastado das suas funções como policial.
O relógio de Sonny trabalha em um ritmo lento no hotel decadente em que ele mora, apenas 121 dias o separam de sua aposentadoria, e completado esse tempo ele pode se afundar definitivamente na própria miséria, sem culpa.
Mas Sonny precisará sacudir a poeira do seu casaco de detetive e voltar a ativa mais uma vez para resolver um último caso a pedido obviamente de uma donzela em apuros, outra característica clássica de histórias noir. Para isso ele precisa engolir o orgulho e pedir ajuda ao seu antigo parceiro de corporação, Marty MacChicken, com o qual tem problemas não resolvidos do passado, que vão se revelando ao longo da trama.
A interação entre Marty e Sonny é fantástica e muito crível desde o primeiro minuto e apesar dos problemas do passado fica evidente a admiração e cumplicidade entre os dois.
Marty é jovem, impulsivo, sarcástico e maluco por armas enquanto Sonny é mais seco, prático e com humor igualmente afiado e cada interrogatório ou troca de diálogos é incrivelmente divertida, apesar da temática pesada do game.
Um pequeno parenteses aqui: o humor dos dois que me lembrou muito a relação entre Robert Downey Jr. e Val Kilmer no filme Beijos e Tiros, e apesar dele ter uma temática diferente de Chicken Police também é uma espécie de filme de tiras aos avessos (recomendo muito o filme também).
Parte dessa credibilidade passada não só pelos protagonistas, mas pelos mais de 30 personagens com diálogos no game, deve-se a dublagem magnífica de Chicken Police e considerando que ele é um jogo focado em narrativa, era imprescindível que esse ponto merecesse destaque.
E felizmente os dubladores elevaram a narrativa já muito boa a um patamar difícil de ser alcançado mesmo por jogos AAA com orçamento imensamente maiores. E quando um indie game chega a esse nível de excelência isso é algo a ser evidenciado e reverenciado.
A trilha sonora composta por músicas de jazz e bebop complementam e transformam a atmosfera soturna que Chicken Police pega emprestado de filmes como O Falcão Maltês em uma obra completa.
A riqueza nos detalhes
Em matéria de jogabilidade Chicken Police – Paint it RED! é um visual novel clássico.
Os personagens durante o diálogo assumem o primeiro plano de uma cena, cada um de um lado, enquanto uma tarja com a conversa transcorrida é aplicada entre eles, enquanto pequenas animações dos personagens acontece, fugindo aqui das poses estáticas características do gênero.
Os cenários de fundo alternam entre 3D ou um 2D com profundidade e seguem a mesma regra ao fugir das telas estáticas ao dar vida a elementos presentes nele, seja um luminoso que pisca, um carro que atravessa a rua ou outros personagens com pequenas animações corporais.
Ao conversar com um personagem Sonny tem duas opções iniciais: olhar e dialogar, e a função dessas duas é basicamente gerar a maior quantidade de impressões possíveis a respeito da pessoa para que isso seja usado quando a terceira e quarta opções ficarem disponíveis: questionar e interrogar.
O ápice de uma investigação é o interrogatório e é preciso jogar um xadrez com o suspeito para extrair o máximo de informações dele. E para auxiliar nessa tarefa o seu personagem tem a mão um bloco de notas, onde escreve todas as impressões descobertas durante as primeiras duas fases da conversa.
Se um suspeito se mostrou inquieto durante o diálogo, Sonny pode explorar essa característica e tentar montar uma armadilha que pode conduzir a informações novas ou únicas que ajudarão na investigação.
É possível saber se está indo bem a cada pergunta através do medidor de detetive, se o questionamento levou Sonny a uma informação relevante e que não deixou a pessoa nervosa o medidor ganha pontos positivos, se a pergunta atingiu um nervo sensível o contador decresce e assim algumas perguntas ficarão indisponíveis.
E ao final de cada interrogatório uma nota é atribuída para a qualidade do mesmo, mas infelizmente isso não altera o rumo da história, no geral. Os desenvolvedores quiseram contar uma história específica e ela é bem focada e linear, então mesmo existindo opções e variações de diálogo o desfecho é o mesmo.
Além do interrogatório a dupla também precisa a cada conjunto de missões organizar todas as informações obtidas em um quadro de provas e ligar os pontos para chegarem a novas conclusões e avançarem na busca de novas pistas e locais para visitar.
Essa organização do quebra-cabeças e estudo das provas deriva muito do gênero point ‘n click, assim como a própria exploração dos cenários e itens, que recompensa o jogador com um pano de fundo mais amplo da vida em Clawville e embora essa exploração não influencie no desenvolvimento da narrativa, ele deixa o jogo muito mais rico e completo.
Por exemplo, embora todo o reino animal esteja presente no jogo, existe um preconceito gigante com os insetos que são relegados às favelas da cidade e que não podem frequentar determinados estabelecimentos ou que precisam vender as suas larvas para restaurantes exóticos para sobreviver, uma crítica óbvia a como nossa sociedade segrega determinadas classes sociais.
Também é possível entender como a rivalidade entre apoiadores da monarquia e separatistas influenciou os rumos do poder, ou como a própria cidade foi fundada a partir de uma guerra sangrenta ou ainda como as disputas de território influenciam como animais de diferentes espécies se relacionam.
O pano de fundo no qual Chicken Police se desenrola é muito rico e eu adoraria ver um novo capítulo dessa aventura explorando os primeiros casos da dupla, ou mesmo o caso que fez com que eles se separarem por anos e onde a decadência de Sonny começou.
Vale a pena?
Chicken Police tem uma narrativa excelente para quem gosta de histórias policiais e é apaixonado pela estética noir e precisa entrar na lista de desejos de fãs de adventures ou visual novels.
O fato dos personagens serem animais antropomorfizados cria uma estética única e ao mesmo tempo surreal e rende piadas que não fariam sentido com personagens humanos e apesar dessa escolha de design talvez ser o grande chamariz inicialmente, ela não deve de forma alguma ser o único motivo para dar uma chance a ele.
A dublagem, os gráficos e a trilha sonora se destacam por sua alta qualidade e demonstram uma atenção ao detalhe, paixão e polimento muito necessários em uma indústria cheia de lançamentos mal otimizados, mesmo que o escopo do projeto trabalhe a favor nesse caso.
A duração do game varia entre 7 e 9 horas, dependendo da quantidade de exploração, se o jogador vai ouvir todos os diálogos (recomendado) e ao tentar realmente fazer um trabalho de detetive juntando pistas e montando o quebra-cabeças macabro de Chicken Police – Paint it RED!.
Uma duração ótima para jogos do gênero, na minha opinião.
Existem mudanças de ritmo ao serem inseridos elementos de perseguição ou que colocam os personagens em perigo que deixam o jogo mais dinâmico, tirando assim o foco na grande quantidade de texto das investigações, mas sinceramente a narrativa é tão boa que eu nunca me senti cansado dela e sempre queria mais.
E ainda quero mais.
Quero outro.
A análise de Chicken Police – Paint it RED! foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do jogo.
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