Análise Unto the End (PS4)
Minimalista, bonito, desafiador e relativamente curto, Unto the End é um jogo de aventura 2D que você precisa experimentar.
Ultimamente tenho preferido as experiências mais intimistas de jogos indies a lançamentos blockbusters e seus mundos abertos de sessenta ou mais horas.
Não me entenda mal, adoro jogos massivos também, tanto que DOOM Eternal foi um dos meus favoritos esse ano, ao lado de The Last of Us Part II e Ghost of Tsushima. E essa declaração não tem relação apenas com o quão decepcionante foi Cyberpunk 2077 no PlayStation 4 para mim, mas muito mais com o mérito que os desenvolvedores independentes têm em conseguir às vezes fazer mais com menos.
E Unto the End é um exemplo perfeito disso.
É admirável como um time de apenas duas pessoas conseguiu criar um game minimalista e ao mesmo tempo tão rico em detalhes de forma tão incrível, apesar da aparente simplicidade inicial.
Desenvolvido pelo casal Stephen Danton e Sara Kitamura, os responsáveis pela 2 Tons Studios, e publicado pela Big Sugar, Unto the End foi lançado em 09 de dezembro de 2020 para PlayStation 4, Xbox One (grátis no Game Pass Ultimate), Nintendo Switch e PC (Steam ou GOG), podendo ser jogado também no PlayStation 5 e Xbox Series X|S através da retrocompatibilidade de cada console.
Unto the End é um jogo de ação 2D com elementos e plataforma com foco em combate de espadas e exploração de cenários. Está legendado em português do Brasil, mesmo que o pouco texto presente esteja quase que exclusivamente limitado o menu de itens. E exceto por uma mensagem antes do início da sua jornada, não existem muitas explicações em como se comportar nele.
E eu adorei isso.
Preenchendo lacunas
O jogo apresenta algumas poucas mensagens contextuais no início, apesar de ter um tutorial um pouco mais tradicional em forma de lembrança (que achei maravilhoso), mas no geral os desenvolvedores querem que você entenda Unto the End através da observação.
E isso vale para a exploração do mundo, passa pelo combate e é importante também para a própria narrativa do jogo.
Por não haver narração ou diálogos, a história é contada em um contexto geral, bem simples, e a partir daí o jogador está por conta própria para desenhar a sua própria narrativa. E é nos detalhes que não são entregues de bandeja que Unto the End me pegou.
Por exemplo, o jogo inicia com o seu personagem saindo para uma caçada solitária, uma mulher e um menino se aproximam e te entregam itens que serão úteis na sua jornada. Pela seriedade e concentração antes da chegada da mulher, talvez a caçada seja perigosa. A despedida em si é menos calorosa do que imaginei que seria, sem abraços demorados ou sequer curtos, apenas um aceno e um último olhar para trás.
Será que existem problemas na relação ou o personagem é apenas um cara durão avesso a sentimentos? E não saber isso me deixou intrigado.
Pouco depois lendo o comportamento do personagem no tutorial eu entendi (e a sua interpretação pode ser diferente) que o que afligia o personagem era algo mais natural e primitivo: o medo. Fica claro que você não é um guerreiro e sim apenas um fazendeiro comum, que sabe apenas o básico para se defender em um mundo hostil e selvagem.
E prepare-se, o mundo fora dos limites da sua propriedade é um lugar repleto de perigos, armadilhas e violência.
Xadrez com espadas
Como mencionei no começo desse texto, Unto the End é minimalista, mas não confunda essa característica com simplicidade. E embora ele possa passar essa impressão em um primeiro momento, quando posto em prática é fácil perceber que ele é bem mais desafiador do que parece.
Por se tratar de um jogo em 2D seria fácil relegar o combate a simplesmente golpear, desviar e se defender, mas a 2 Tons conseguiu criar um sistema mais complexo e com mais nuances do que eu espera. O combate funciona baseado em posturas de uma maneira bem similar ao visto em jogos como For Honor ou Punch-Out, por exemplo.
Se um inimigo atacar por cima você precisa defender o golpe com um bloqueio alto ou se abaixar, por outro lado, se ele golpeia abaixo da linha de cintura é possível pular ou se defender com o bloqueio baixo.
Cada tipo de inimigo tem uma barra de postura invisível e após um determinado número de golpes bloqueados em sequência (entre 3 e 4) eles ficam momentaneamente atordoados e abertos a um contra-ataque mais poderoso que causa mais dano. E aqui que as coisas começam a ficar um pouco mais complicadas.
Unto the End é um jogo bem estratégico em que você precisa observar o movimento dos inimigos e ter reação rápida o suficiente para responder a altura, e com certeza, esmagar botão a esmo só vai te frustrar.
As suas respostas durante a luta geralmente são no sentido oposto ao golpe do adversário, a regra do atacar por cima, defender e responder embaixo funciona durante toda a luta, exceto quando o inimigo fica nesse estado de atordoamento, nesses casos o mais importante é observar a posição que a arma dele ficou após o último golpe aparado antes do contra-ataque.
Por exemplo, digamos que o último ataque de uma sequência seja um golpe alto, você conseguiu defender e agora o inimigo está atordoado com a espada na postura baixa, se você atacar embaixo, que seria o natural já que o último golpe do adversário foi em cima, o seu golpe será defletido automaticamente deixando o seu personagem aberto a um contra-ataque que causará o dobro de dano.
Felizmente se você for rápido o suficiente vai conseguir se defender desse revés, mas com isso acaba de perder uma chance de aplicar um golpe crítico no inimigo, que só estará aberto a esse tipo de dano novamente após uma nova sequência de aparadas bem-sucedidas.
Além dos ataques e contra-ataques com a espada, o jogador também pode desviar usando rolagens; usar uma faca arremessável (e uma lança no trecho final) que pode ser recuperada ou construída de novo se perdida; usar uma investida de ombro que derruba inimigos básicos e construir e aprimorar uma armadura de ossos que confere maior resistência física, mas que se quebra com ataques.
A inteligência artificial dos inimigos é bem implementada e mesmo os mais simples e que morrem com poucos golpes podem surpreender. Fora a posição deles, que é fixa, raramente existirão ataques pré-definidos, então assim como você os seus algozes reagem ao que você traz para a batalha e aprendem com o que você faz.
O sistema que rege a potência dos ataques também é bem interessante. Ataques normais causam 1 unidade de dano, enquanto ataques em inimigos atordoados causam o dobro desse mesmo dano. Tentativas de defesa erradas fazem com que o jogador recebe o dobro de punição, enquanto tomar qualquer golpe enquanto sofre de sangramento, durante uma rolagem ou quando estiver pulando causa o triplo de ferimentos. Por isso que algumas vezes um inimigo que precisaria de três golpes para te matar acaba te dizimando com apenas um.
Você pode se curar dos ferimentos usando poções ou parar sangramentos mastigando ervas, e enquanto isso pode ser feito a qualquer momento, a preparação desses elixires só é feita nas fogueiras do jogo, onde também é possível reparar sua armadura e se curar diretamente. Por outro lado os recursos são limitados, então se curar toda hora não é uma boa ideia já que em um momento de necessidade real talvez você não tenha essa opção por não ter mais recursos. Muitas vezes morrer e tentar de novo é uma estratégia mais inteligente do que usar preciosos itens de cura ou avançar com a armadura quebrada.
Um toque especial superinteressante é que alguns combates podem ser evitados usando diplomacia através de uma simples troca de itens, como se fosse o pagamento de um pedágio, aos moldes de Undertale. Não vou entrar em detalhes sobre esse ponto já que é legal descobrir como e quando essa mecânica pode ser uma aliada vital.
Luz e sombras
A arte, trilha e efeitos sonoros de Unto the End são incríveis dentro da proposta do game. Durante boa parte o seu personagem vaga por cavernas escuras e a única forma de não se perder é usando a luz de uma tocha, o que cria um contraste de luz e sombras muito bonito.
Quando o combate inicia a tocha não é prioridade, sendo derrubada já no primeiro ataque, o que torna tudo mais claustrofóbico ainda, afinal você precisa lutar em uma área limitada em que existe luminosidade para poder telegrafar bem as ações e reações dos inimigos.
O visual de Unto the End lembra muito o do clássico Another World, original de Atari relançado para diversas plataformas desde então, e que foi muito influente para toda uma geração de desenvolvedores, e essa similaridade não é coincidência e sim uma homenagem.
Perguntei ao desenvolvedor no twitter se de alguma forma Another World tinha sido uma inspiração nos visuais, e ele me disse que não só foi inspiração, como a cor do cabelo do personagem de Unto the End é uma homenagem direta a Lester Knight, personagem principal de AW.
E assim como na inspiração, em prol de um visual mais limpo, não existe aqui um mapa na tela (e nem em lugar nenhum); o seu personagem e os inimigos não tem barras de vida a mostra; e só é possível saber o quanto ele está ferido através da respiração cada vez mais pesada e pela quantidade de sangue na barba e na roupa dele. É inteligente, efetivo e visualmente lindo.
O som das armas, os inimigos espreitando e a respiração ofegante do nosso herói faz com que seja possível viver toda a solidão dessa jornada. Essa qualidade de som, em conjunto com a trilha sonora abafada e grave, e muitas vezes na ausência dela, ajuda a criar o tom lúgubre de Unto the End, e o que me fez temer a cada minuto por um final não muito feliz.
Será que esse temor se concretizou? Só tem uma forma de você saber…
Vale a pena?
Unto the End é uma jornada solitária incrível. Você está sozinho em um mundo hostil e tem poucos recursos a sua disposição, não é um grande herói saído de épico, mas sim apenas um pai de família que quer achar o caminho de volta para casa.
É uma narrativa poderosa, mas que depende da interpretação e envolvimento de cada um já que nada é dito ou narrado durante o jogo todo, e apesar de algumas lacunas poderem ser preenchidas com as poucas linhas das descrições dos itens, que mencionam outros povos e criaturas monstruosas, grande parte do entendimento deste mundo vai depender da imaginação do jogador. E embora algumas pessoas possam ver nisso um defeito ou limitação, eu vou por um lado completamente diferente. Isso me instiga.
O combate é desafiador e pode ser frustrante para algumas pessoas por depender de reações bem rápidas, mas não se preocupe mesmo quando você já tiver entendido e dominado todas as nuances das lutas morrer vai ser uma constante, felizmente os checkpoints são bem espaçados e não é necessário repetir grandes trechos após perder um combate.
Além disso existe uma opção de assistência, que pode ser ligada e desligada a qualquer momento no menu, que torna o golpe dos inimigos ligeiramente mais exagerados, ficando mais fácil antecipar quando um ataque será por cima ou quando será por baixo.
Explorar é vital para conseguir mais recursos que serão úteis para facilitar a sua jornada através do game, além de prolongar um pouco a sua duração já que Unto the End é relativamente curto. Eu terminei (e platinei) ele com mais ou menos 6 horas, encontrando todos os itens apenas explorando naturalmente, sem auxílio de guias.
Obviamente esse tempo vai depender do quanto o combate vai te dar trabalho, mas tenha em mente que independente da dificuldade ou duração, Unto the End é uma experiência que vale a pena por tudo que ele consegue fazer com tão pouco.
A análise de Unto the End foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do jogo.