Análise Black Legend (PS4)
Black Legend é um RPG tático em turnos com ótimas mecânicas de combate, mas problemas de ritmo atrapalham a experiência final.
A teoria do Humorismo, dentro da medicina antiga, foi criada na Grécia e aplicada como dogma até o século XVII. E apesar de ter perdido o fôlego, ela ainda foi usada por alguns médicos até o início do século 19. Segundo ela, o ser humano possuía quatro fluídos corporais (sangue, bile negra, bile amarela e fleuma) que regulavam a nossa saúde. As doenças, ou até mesmo a personalidade da pessoa, eram reflexos diretos do desbalanceamento desses fluídos.
Pode parecer absurdo que essa teoria tenha tido uma força tão grande, entendendo hoje como a anatomia funciona. Mas era uma hipótese que fazia bastante sentido na época, por conta de toda sua relação com as várias teorias dos 4.
As 4 estações influenciavam qual humor seria afetado por elas. No inverno, gripes e resfriados são comuns, e a pessoa ficar acamada e com o nariz escorrendo seria uma expulsão natural do excesso de fleuma que o corpo acumulou. Os 4 elementos também afetavam os humores, dizia-se que o excesso de sangue tornava a pessoa afogueada, por exemplo.
Então, é fácil perceber que, para o homem antigo e supersticioso, acreditar nessas explicações fazia todo sentido por conta dessas várias conexões com outros fatores cotidianos.
Já uma crença menos popular e mais obscura, mas que também se apoiava em quatro pilares, era a teoria alquímica. Segundo ela, quatro substâncias – nigredo, albedo, citrinitas e rubedo – seriam matéria-prima para o ritual da Magnum Opus, cujo produto, a Pedra Filosofal, garantiria riquezas e imortalidade ao seu portador.
E foi a junção dessas duas teorias, do humorismo e da alquimia, que os desenvolvedores do estúdio belga Warcave usaram para criar o combate riquíssimo do seu novo jogo: Black Legend, um RPG de combate em turnos e visão isométrica com ótimas ideias, mas com uma execução que deixou um pouco a desejar.
Com certeza, o combate e o sistema de classes híbridas (que explicarei em breve) são os destaques do título, mas antes de entrar nesses pontos vamos falar sobre a ambientação e a história dele.
Esquadrão suicida medieval
Black Legend se passa em uma cidade fictícia da Europa do século XVII, chamada Grant. Apesar da atmosfera medieval histórica, presente na arquitetura, armas e armaduras, o jogo conta com elementos de fantasia muito proeminentes, com influência grande do folclore belga e teutônico, no geral.
Na história criada para o game, o reino resistiu por anos a diversas guerras contra seus vizinhos, mas com a cidade sitiada e suas forças reduzidas a cidade cairia, mais cedo ou mais tarde. Até que um poderoso alquimista chamado Mephisto (ainda não é esse, Marvetes) entra na jogada. Usando seus conhecimentos quase sobrenaturais, ele cria uma névoa que cobre a cidade e enlouquece quem tem contato com ela. Dessa forma, inimigos que não retrocedessem acabariam morrendo pelas mãos dos próprios comparsas, após eles se tornarem bestiais.
Como essa névoa também afetaria o exército e os habitantes da cidade, o alquimista criou também um antídoto para que só os invasores sofressem os efeitos do seu “feitiço”. O jogo parecia ter virado, porém Mephisto desaparece e o reino fica sem a sua fonte de cura.
Sem invasores, mas tendo que lidar com um inimigo silencioso tão mortal quanto, o povo tem apenas duas escolhas: se trancar em casa e definhar ou morrer nas ruas. Grant se transforma então em um cemitério ao ar livre. E se a névoa já não era suficiente, cultistas que enxergam Mephisto como um novo Messias, surgem para piorar a situação.
E é aqui que você entra. Em Black Legend os seus personagens são mercenários que foram capturados, e aos quais é oferecido o perdão real, caso consigam localizar o alquimista e dar fim à névoa. Esse é seu objetivo principal, mas várias missões secundárias engrossam o caldo do game, e sempre existirão inimigos tentando te impedir.
O conceito de estratégia
Embora a história de Black Legend seja interessante, ela é um pano de fundo secundário, e é possível até ignorá-la completamente. O fato de não existir localização para o nosso idioma vai atrapalhar quem não domina a língua inglesa, e assim essa narrativa ficará ainda mais em segundo plano.
E se a história não é o ponto mais forte do título, a jogabilidade dele brilha. Ou melhor, deveria, mas mesmo nesse ponto falhas podem fazer com que alguns jogadores abandonem o game antes mesmo de entender como ele funciona.
Como mencionei no início deste review, o combate é muito interessante e rico, mas ele esbarra em um problema grave logo de início: a falta de tutoriais competentes e uma interface de usuário confusa, e que pode deixar o jogador perdido.
Inclusive, gravei um vídeo para o canal do Conversa no YouTube explicando como essa jogabilidade funciona, para que você não precise passar pelos mesmos perrengues que eu passei no começo. Se você quiser assisti-lo, basta clicar aqui.
Mas funciona assim, você escolhe uma classe inicial e dentro dessa classe existem alguns golpes disponíveis. Esses ataques podem ter, ou não, elementos alquímicos atrelados a eles. O que é representado por triângulos de cores diferentes. Um golpe que tenha um triângulo vermelho e um preto causarão danos de rubedo e nigredo, por exemplo, prejudicando os humores do sangue e da bile negra dos inimigos, respectivamente.
O objetivo então é combinar golpes que tenham relação alquímica e por fim utilizar um ataque catalítico especial que causará dano massivo aos inimigos. Aprender e dominar essa mecânica é vital para encerrar os combates mais difíceis rapidamente.
O interessante é que nem todos elementos podem ser combinados para essa finalidade, e usar um ataque catalítico nessas condições pode “desperdiçar” o poder desse golpe e zerar os elementos acumulados. Por exemplo, o ataque de citrinita (amarelo) pode ser combinado ao ataque de rubedo (vermelho) para criar o catalizador de bronze, ou ao ataque de albedo (branco) para criar a alquimia de ouro, mas não faz par com o ataque de nigredo (preto).
Fique tranquilo que não é necessário decorar esses padrões. Os personagens têm losangos sob as cabeças com esses mesmos triângulos, e o catalisador é formado quando a combinação entre as cores faz com que um dos vértices dele fique destacado. Cada elemento pode ser aplicado 3 vezes, e caso sejam criadas as quatro combinações alquímicas possíveis, o dano do ataque especial é devastador.
Dessa forma, caso um personagem tenha golpes que possuam apenas danos amarelos e pretos, é necessário que outro membro do esquadrão tenha ataques que tenham alquimias brancas e vermelhas, para que seja possível construir essas combinações. Para garantir que os jogadores do time tenham golpes de cores diferentes, Black Legend conta com um sistema de classes híbridas fenomenal.
Cada ataque tem uma barra de experiência própria, e cada vez que o jogador usa ele em combate, ela aumenta. Ao chegar ao máximo da barra o personagem aprende aquele golpe, e aqui é onde entra a parte legal da coisa. Ao aprender um ataque de uma classe, você pode mudar para outra (que terá ataques diferentes) e equipar o golpe aprendido em um dos três slots híbridos.
Isso abre um leque de possibilidades impressionante já que é possível aprender os golpes que acha mais efetivos de uma classe, com diferentes elementos, e combinar eles a uma outra classe que tenham status melhores.
Por exemplo, o Médico da Peste tem uma habilidade maravilhosa chamada Ervas de Cura, mas é uma classe relativamente ruim no quesito Força. Já a classe Duelista, além de escalar melhor com esse status, tem um incremento em Velocidade (quantas vezes você pode usar o personagem em um mesmo turno) muito superior ao Médico da Peste.
Dessa forma, assimilar essa habilidade com o Médico e mudar para o Duelista é uma ótima estratégia para criar um híbrido forte, e ainda ter a possibilidade de economizar itens de cura, raros no início do jogo. Detalhe importante: os ataques são aprendidos por personagem. Ou seja, um golpe aprendido com um dos quatro membros do seu bando só poderá ser usado interclasse naquele personagem. Para usar com todos é preciso aprendê-lo individualmente.
Outro fator também importante é que, além de estarem atrelados às classes, os golpes são vinculados a uma determinada arma. Então mesmo liberando uma classe nova, pode ser que você não consiga aprender todos os ataques dela no momento, se não tiver a arma certa. Essa necessidade leva o jogador a variar não só as classes, mas também o arsenal.
Além disso, cada ataque tem um dano base e um dano alquímico próprios e cada uma consome uma quantidade de pontos de ação para serem usados. Por se tratar de um RPG tático em turnos, fazer um planejamento eficiente é vital em Black Legend.
Nem sempre causar o maior dano é a melhor saída, já que golpes mais fortes consomem mais pontos de ação. Muitas vezes é vantagem usar dois ataques fracos, mas de cores diferentes, para assim criar um catalisador, e ainda ter pontos suficientes para aplicar um ataque especial, do que usar um golpe com dano base maior, e não sobrarem pontos na rodada para o finalizador.
E esse planejamento é um diferencial para quem gosta de jogos estratégicos.
Vale a pena?
A combinação das mecânicas de jogabilidade é tão única que tentar montar o grupo perfeito me instigou a testar as várias possibilidades que as várias classes e armas oferecem. Mas, infelizmente, mesmo com esses sistemas tão incríveis, o game esbarra em um problema maior que a primeira barreira dos tutoriais ineficazes: um loop de jogabilidade repetitivo e sem surpresas.
Black Legend fica desafiador a medida que aparecem inimigos mais fortes, e que, com suas próprias classes, podem usar os mesmos ataques alquímicos que você. Mas a impressão que fica é que se você entrou em um combate entrou em todos. A variação fica por conta das batalhas com os Chefes, que são mais elaboradas e precisam de um planejamento mais meticuloso, mas mesmo elas acabam não diferindo muito entre si.
As sidequests contribuem para que o ritmo do jogo seja arrastado, e se – assim como eu – você gosta de fazer tudo que os games disponibilizam, saiba que o vai e vêm para cumprir todas missões será considerável. No terço final é liberado um sistema de viagem rápida que torna o trânsito entre distritos mais fácil, mas essa é uma função que demora muito a aparecer. Mais do que deveria.
Existem alguns problemas de controle de câmera quando os combates acontecem em espaços muito próximos a paredes ou em desníveis maiores de terreno, mas isso não é algo que quebra o game, apesar de ser algo que incomoda quando acontece.
A quantidade de armas, armaduras e bugigangas que podem ser equipadas, e que alteram a jogabilidade, além das 15 classes disponíveis e seus vários ataques é realmente surpreendente. Principalmente considerando que a Warcave é um estúdio independente, e que sete pessoas foram responsáveis pela criação, desenvolvimento e publicação de Black Legend.
No final das contas, gostei da minha experiência com o game, mesmo que ela tenha demorado a engrenar, e estou curioso para ver quais serão os próximos passos do estúdio. Ainda mais se eles conseguirem um orçamento maior no futuro, porque competência para criar mecânicas ótimas eles mostraram com esse jogo que têm de sobra.
A análise de Black Legend foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do jogo.
O game também está disponível para Nintendo Switch, Microsoft Windows, Xbox Series X, PlayStation 5 e Xbox One.