Análise The Dark Pictures Anthology: The Devil in Me (PS5)
Problemas de performance não permitem o ótimo The Devil in Me seja o melhor jogo da The Dark Pictures Anthology até agora por muito pouco.
“Só o tempo pode revelar-nos um homem bom; o perverso pode ser conhecido apenas em um dia.”
Sófocles, em Édipo Rei.
No caso de The Devil in Me, o perverso precisa de apenas poucos minutos para mostrar sua face ao jogador.
E, apesar de serem minutos particularmente violentos, o que os torna chocante de verdade — além da inocência com que eles começam — é a sua âncora com a nossa realidade.
Apesar de se tratar do quarto jogo da série, a The Dark Pictures Anthology é uma antologia de jogos de horror cinemático em formato independente criada para apresentar experiências novas e aterrorizantes regularmente. Cada título conta uma história inédita e única, além de trazer localidades, ambientação e personagens distintos.
E, embora as antologias de horror não sejam uma novidade — já que elas tem mais de duzentos anos de existência na literatura, seguidas por quase cem anos no rádio e cinema — a primeira vez que esse formato narrativo chegou aos videogames foi com o lançamento de Man of Medan, em 2019.
As raízes do horror antológico da The Dark Pictures tem inúmeras influências e prestam homenagens frequentes àqueles que vieram antes.
Seja o início de tudo com o lançamento, em 1837, do livro Twice-Told Tales de Nathaniel Hawtorne, passando por Contos do Grotesco e do Arabesco, de Edgar Allan Poe, até chegar ao meu autor favorito, Stephen King, a fonte de inspiração parece inesgotável. E isso é refletido e reverenciado em cada um dos games da franquia.
Entretanto, o que mais gosto na forma como a Supermassive Games tem desenvolvido a sua Antologia é como ela consegue mesclar acontecimentos históricos às suas narrativas, explorando para isso diversos sub-gêneros do horror e do terror.
Em Man of Medan temos a clássica história do Navio Fantasma e sua tripulação amaldiçoada, baseada em um navio possivelmente real (Apesar de famoso, o SS Ourang Medan pode nunca ter existido de fato).
A Caça às Bruxas é o tema central de Little Hope e tem sua óbvia inspiração nos julgamentos de Salém e Andover.
Já House of Ashes aborda o declínio da civilização Acadiana misturando esse fato histórico a vários mitos sumérios, possessão demoníaca, Guerra do Iraque, dentre outras coisas que prefiro não comentar para não estragar a surpresa (É de explodir a cabeça quando acontece, sério).
Agora, com The Devil in Me, é a vez de mergulhar na mente de um psicopata e participar dos seus jogos mortais.
No jogo uma equipe de filmagem é convidada a passar um dia em um hotel conhecido como Castelo da Morte, uma pseudo-recriação de uma das propriedades do infame Henry Howard Holmes, considerado por estudiosos como o primeiro serial-killer americano.
Uma atração macabra, mas que seria a salvação do drama-documentário que a Lonnit Entertainment estava com dificuldades para produzir sobre o assassino. Uma oportunidade boa demais para ser verdade, mas impossível de recusar por este mesmo motivo. Eles talvez só não esperassem que a expressão “marketing agressivo” pudesse ter uma conotação tão literal.
H. H. Holmes confessou 27 assassinatos no século XIX, e apesar de apenas 9 serem oficialmente comprovados, a suspeita é que suas vítimas possam ultrapassar a casa das 200. E, algumas dessas vidas teriam sido ceifadas no próprio hotel do Psicopata da Cidade Branca, como Holmes também ficou conhecido.
A equipe talvez não devesse confiar nas boas intenções de alguém que admira um assassino em série a ponto de construir um hotel macabro para recriar o seu principal esconderijo e matadouro. Mas, o que é a vida senão um conjunto de má decisões e arrependimentos, não é mesmo?
Além disso, não existiria qualquer obra de terror se os protagonistas sempre tomassem decisões racionais. Então não espere que isso aconteça aqui também.
Agora observados, isolados e manipulados como ratos de laboratório no labiríntico Hotel, os personagens precisam navegar não só pelos seus quartos e corredores cheios de armadilhas mortais, como também pela mente doentia e assassina do seu proprietário.
Logo fica claro que o checkout desse inferno talvez não aconteça para todos. Será preciso tomar muitas decisões importantes, algumas questionáveis, que serão a chave para que os personagens possam viver para se arrepender. Ou talvez não. Mas essa parte só depende de você.
Os jogos da The Dark Pictures Anthology têm melhorado consistentemente a cada novo lançamento e, apesar de estarem longe de serem perfeitos, The Devil in Me trouxe novidades importantes para a jogabilidade da série com o intuito de aprimorar o senso de imersão e recompensar a exploração.
Um novo sistema de exploração foi adicionado possibilitando aos jogadores uma liberdade maior para interagir com o mundo à sua volta. Não existem objetivos secundários por si só, mas é possível investigar ramificações do cenários e com isso entender a trama escondida por trás do Castelo da Morte. Mas não se empolgue demais, não chega nem perto de ser um mundo aberto, mas já é uma evolução que mascara muito bem a linearidade do jogo.
Outra novidade fica por conta da adoção de um sistema de inventário, que dá a cada personagem ferramentas individuais úteis como fone e microfone (para ouvir através as paredes), lanterna e flash de câmera (para iluminar os ambientes), chave de fenda (para resolver puzzles) e vários outros objetos.
Um personagem estar de posse de um destes itens em um momento crucial pode significar a diferença entre a vida e a morte. Literalmente.
Mas, o melhor de tudo é que agora seu personagem pode fazer tudo isso correndo — uma função pedida desde Man of Medan e que, finalmente, foi implementada aqui.
É meio estranho celebrar algo tão corriqueiro, mas você só percebe a falta quando não existe a opção. Na minha primeira jogada quase não corri porque gosto de absorver todos os detalhes e tomar todos os sustos de peito aberto, mas para os vários replays parciais que costumo fazer dos games da antologia para conquistar o troféu de platina, essa será uma função essencial.
O restante da jogabilidade segue sendo baseado em escolhas e quick time events, assim como os jogos anteriores.
Durante diálogos específicos existem três opções de reação: uma mais racional, representada por um símbolo de um cérebro; outra mais emotiva, simbolizada por um coração; e a opção de não reagir e ficar em silêncio. Não existem garantias ou respostas certas e algumas escolhas podem alterar trechos inteiros, que podem ou não existir, baseados nessas escolhas. É preciso analisar o contexto a cada caso.
Isso significa que relações serão construídas ou destruídas dependendo da postura adotada, e consequências dos seus atos determinarão quais personagens chegarão ao final ilesos, quem morrerá, ou até mesmo se alguém vai conseguir escapar.
Além da influencia dessas decisões, outra dinâmica de jogabilidade determinante para o sucesso ou fracasso no jogo é a atenção ao quick time events que acontecem em diversos momentos. É importante estar atento a essa mecânica porque poucos erros em sequência significam a transformação de um personagem querido em uma poça de sangue e membros em um piscar de olhos.
Felizmente, desde do segundo jogo um aviso de ação aparece na tela um pouco antes do QTE de fato acontecer, dando tempo ao jogador para que se prepare. Além disso, existem opções de acessibilidade para aqueles que querem apenas curtir a história, personalizando assim o nível de dificuldade adequado para cada experiência.
E claro, eu não poderia escrever sobre a The Dark Pictures sem mencionar a onipresença do seu personagem mais misterioso: o Curador de Histórias.
Desenhado para ser o guardião da biblioteca macabra que guarda os livros com as histórias parcialmente escritas que os jogadores experienciam — e único personagem fixo da franquia até aqui — ele ainda é um grande enigma que fãs, como eu, gostariam de ter mais pistas sobre, já que teorias temos de sobra.
Como The Devil in Me encerra o que a desenvolvedora chamou de “primeira temporada”, eu esperava que mais detalhes sobre a natureza do personagem fossem revelados. Mas como diria o Pica-Pau: fui tapeado.
Apesar de uma dica bem no início do seu primeiro monólogo e um novo tipo de colecionável praticamente confirmarem a teoria mais “aceita” entre a comunidade, eu não apostaria todas minhas fichas nisso. Se tem algo que a Dark Pictures me ensinou é que nem tudo que reluz é ouro.
O Curador tenta parecer um agente neutro, mas sempre que puder ele tentará influenciar suas decisões, e soará até desapontado com os seus sucessos. Seus conselhos trabalham quase única e exclusivamente na intenção de direcionar a narrativa para o que ele quer, e quase nunca para ajudar o jogador. Minha dica é: aceite todos, não siga nenhum. Ouça cada um deles. É importante saber o que no fundo ele quer, mesmo que não fique claro em um primeiro momento.
E não vai ser dessa vez que vai ficar. Maldição.
Se você não faz o tipo aventureiro solitário, The Devil in Me — assim como os outros jogos da antologia — conta com modo cooperativo local para até 5 jogadores no esquema “passa o controle que agora é a minha vez” e um multiplayer online para 2 pessoas. E fique tranquilo, se coragem para encarar jogos de terror sozinho é o que te falta, saiba que esse é o título com menos sustos da franquia até agora. Ele constrói uma trama mais calcada no terror psicológico e na expectativa do que está por vir em detrimento de se apoiar na muleta do jump scare. Achei sensacional, mas entendo quem goste mais de ter o coração acelerado a cada corredor.
No quesito duração, a campanha gira em torno de 7-8 horas, o que é um pouco mais do que vimos nas entradas anteriores da antologia e mais próximo de Until Dawn, mas ainda mais curta que a história de The Quarry, por exemplo — o que alguns podem ver como uma vantagem ao invés de um demérito. Já o fator replay do game depende bastante do seu envolvimento com os personagens, a história e a vontade de testar novos caminhos e decisões.
Durante minha primeira jornada enfrentei vários bugs como diálogos sem som, movimentação travada de alguns personagens, legendas ausentes em alguns trechos com NPCs se recusando a fazer determinadas ações quando precisei deles.
Uma atualização foi lançada após eu ter finalizado o jogo e parece ter consertado quase todos esses problemas até onde pude checar, mas como não terminei meu segundo playthrough no Curator’s Cut a tempo para este review resolvi mencioná-los aqui, por garantia. Por outro lado, a Supermassive tem trabalhado constantemente em atualizações, inclusive acrescentando conteúdo aos jogos anteriores, então não vejo motivos para não acreditar que mesmo algum bug citado, e que porventura ainda persista, não seja arrumado em futuros updates.
Só posso garantir que após terminar The Devil in Me já abri oficialmente a minha contagem — e expectativas — para o próximo episódio da The Dark Pictures Anthology, Directive 8020. Tomara que não precise esperar muito tempo para saber mais detalhes sobre. E vocês, empolgados?
A análise de The Dark Pictures Anthology: The Devil in Me foi escrita com base em uma cópia de review gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do game. Também disponível para PlayStation 4, Xbox One, Xbox Series e Microsoft Windows.