Análise Atomic Heart (PS5)
Com ambientação impressionante e combate cheio de possibilidades Atomic Heart poderia ser excelente, mas erra pelos seus próprios excessos.
“Nem Deuses ou Reis. Apenas o Homem.”
Slogan em BioShock, 2007.
No dia 26 de fevereiro de 2023 BioShock Infinite completará 10 anos. O último de uma trilogia fantástica que terminou cedo demais, mas cuja importância está longe de ser esquecida. E uma prova de que essa influência está mais viva do que nunca é Atomic Heart.
Durante cinco anos — desde o primeiro trailer até o seu lançamento — esperei que Atomic Heart fosse o sucessor espiritual que a franquia BioShock nunca teve e sempre mereceu.
E nas primeiras horas a apresentação dessa utopia soviética, ambientada em um 1955 alternativo pós-Segunda Guerra, com tecnologias super avançadas do futuro do passado me fizeram acreditar que os desenvolvedores da Mundfish haviam conseguido capturar com maestria o que tornava as cidades de Rapture e Columbia os verdadeiros protagonistas da série BioShock.
Ao acreditar nisso eu estava certo e errado ao mesmo tempo. Eu só não sabia ainda naquele momento.
Minha jornada com Atomic Heart foi uma verdadeira briga de foice e martelo para entender qual desses sentimentos dominaria o outro. O saldo final — pelo menos para a minha experiência — foi positivo e consigo recomendá-lo, mas tenho mais ressalvas do que imaginei quando comecei.
Em primeiro lugar, o complexo Tchelomey e a Instalação 3826 são tão incríveis quanto Rapture ou Columbia, e a ambientação e direção artística retro futurista de Atomic Heart são, sem sombra de dúvidas, as suas maiores qualidades.
O mundo é detalhado e a arquitetura soviética que sempre valorizou a forma e função para gerar imponência é muito bem representada aqui, com a óbvia extrapolação tecnológica de uma sociedade utópica de vanguarda com robôs de todos os tamanhos, formas e funções, megaestruturas e até cidades inteiras voadoras. Além claro, do design dos próprios autômatos. É de cair o queixo.
A história da criação dos polímeros — uma espécie de gel programável com inúmeras aplicações para geração de energia e robótica —, da rede de inteligência artificial Kollektiv e o aguardado lançamento do dispositivo MENTE — uma interface que permitirá aos humanos controlar essas máquinas com o pensamento na versão 2.0 da Kollektiv — é fascinante e envolvente.
A primeira hora de Atomic Heart onde tudo isso é introduzido é matadora. E mesmo com todo o esforço do nosso protagonista, Major P3, em ser um camarada detestável a cada dois diálogos, ainda é uma excelente introdução. O problema é que, como diria o poeta: merdas acontecem. E quando acontecem, transformam essa utopia em uma distopia em um estalar de dedos.
A partir desse momento você e Char-les, sua luva tecnológica senciente, precisam limpar toda a bagunça causada por robôs assassinos descontrolados antes que o mundo saiba da nova realidade da Instalação 3826. É importante controlar a informação e os danos, afinal o mundo inteiro passaria a usar os robôs sovietes quando a Kollektiv for lançada globalmente.
E, é a partir desse momento também que toda exposição narrativa inicial impecável se torna extremamente previsível e enfadonha, muito por culpa da personalidade problemática do nosso protagonista, que não consegue calar a boca e parar de reclamar por um minuto inteiro.
Char-les tenta ser o contraponto equilibrado da história, mas é difícil simpatizar com o Major Testosterona. Testei as dublagens em inglês, português e russo e em todas ele é um militar estressadinho que me faz ter muita saudade dos protagonistas mudos em videogames.
Por outro lado, a história por trás da história, contada através do ambiente, terminais de e-mail, zunidores — registros de áudio espalhados pelos cenários — ou através de conversas com os mortos, essa sim é absurdamente mais interessante que a linha principal.
Montar o quebra-cabeças do que aconteceu pelos olhos das pessoas que viviam no complexo, ou como eles percebiam o sonho comunista ao seu redor, é muito mais intrigante. E é uma pena que essa seja uma parte que pode (e vai) ser ignorada pela maioria dos jogadores.
O combate em Atomic Heart é outro ponto que me deixou dividido.
Por diversos ângulos considero que acertaram em cheio, mas por mais contraditório que possa parecer, em outras vertentes não diretamente relacionados a ele mas que acabam o afetando, eles erraram muito.
Apesar de interessante e bem variado em opções oferecidas — ataques corpo a corpo, armas de fogo comuns, armas de energia e poderes utilizando Char-les que variam de congelamento, telecinese, a um jato de polímeros condutores de elementos —, a estrutura das missões, repetição de inimigos sem tanta variedade à exaustão, e o próprio ritmo do título a partir do final do primeiro ato transformam ele em algo maçante que você quer evitar a todo custo.
A exceção fica por conta das batalhas contra Chefes que são bem diferentes entre si, interessantes e bastante exigentes.
Nesse sentido, o mesmo problema em relação a história se repete aqui: o começo do jogo até o ponto que o jogador deixa o complexo Vavilov parecer ter sido melhor pensado e estruturado do que quando ele assume a vertente mundo semi aberto adotada para o restante da campanha.
A impressão é que talvez em algum estágio do desenvolvimento eles tinham um jogo redondinho e precisaram transformar ele em um mundo aberto para ter um game mais longo que justificasse o seu preço, assim como vários outros que sofreram desse mesmo mal em anos recentes por acreditar que mais conteúdo é garantia de interesse e consequentemente vendas. Entretanto, o tempo tem demonstrado que essa matemática, contrariando todos os seus princípios, não é uma ciência exata.
O maior problema no caso, e que acaba afetando o combate, é que o mundo aberto de Atomic Heart é na verdade um grande cenário semi aberto cheio de limitações.
Apesar de grandioso e lindo — como citado, a ambientação é a grande estrela aqui — ele é uma chatice de explorar pela quantidade absurda de câmeras que alertam inimigos e pelo próprio número desses inimigos por metro quadrado.
É possível contornar isso de duas formas: fugir até o alerta cessar ou sobrecarregar e causar uma avaria ao gerador que mantêm o Falcão — uma espécie de balão vigia dos céus que conecta todas câmeras e robôs — e com isso ganhar alguns minutos com todas as máquinas da região desativadas até que o gerador seja reconstruído e todos voltem à ativa.
O problema é como isso é burocrático: você precisa encontrar a torre que controla as câmeras, achar a que aponta para a central de controle do Falcão, abrir a porta, descer da torre, ir até a central e causar uma pane no gerador. Fazer isso toda vez que quiser dar uma voltinha em paz para coletar itens suficientes e fazer os upgrades nas suas armas e poderes preferidos é tão chato quando esse parágrafo fez parecer.
Em compensação, quando penso no já citado primeiro ato em Vavilov ou qualquer da áreas mais contidas como o Centro Panrusso de Exposições, o Teatro ou mesmo as dungeons opcionais, esses problemas inerentes de um mundo aberto genérico são minimizados a ponto de parecerem nem existir no mesmo jogo. Pelo menos não por uma ou duas horinhas.
Além disso, o equilíbrio entre as sessões de combate e quebra-cabeças nesses locais quebra o ritmo de shooter mais frenético das áreas abertas e serve para momentos de exposição em que Char-les tenta fazer o Major repensar suas prioridades e buscar respostas que talvez esconderam dele.
Nesses momentos mais intimistas Atomic Heart se torna tenso, claustrofóbico e com um clima quase de horror. E, na minha não tão humilde opinião, se o jogo se restringisse a isso ele teria potencial para ser ótimo, contudo ele se contentou em ser apenas bom.
“Todos nós fazemos escolhas, mas no final nossas escolhas nos fazem”
Andrew Ryan em BioShock, 2007.
A análise de Atomic Heart foi escrita com base em uma cópia de review gentilmente cedida pela Focus Entertainment. Também disponível para PlayStation 4, Xbox One, Xbox Series e Microsoft Windows.