Análise Lies of P (PS5)
Lies of P faz um excelente trabalho ao reunir influencias de jogos aclamados no gênero souls-like, mas conservando uma identidade própria magnífica.
Lies of P se tornou uma nova paixão (para não dizer um vício), e depois de experimentar diversos souls-like desde os melhores, passando pelos bons e chegando em alguns não tão inspirados — para não dizer ruins ou péssimos — ele é uma demonstração excelente de como aproveitar inspirações sem ser desonesto a ponto de ser uma cópia sem alma.
Antes de mais nada, sim, visualmente Lies of P é claramente influenciado pela atmosfera gótica de Bloodborne combinado a uma versão alternativa steampunk da Belle Époque. Mas ele não é o novo Bloodborne, e muito menos um sucessor espiritual. E, de certa forma, a sua jogabilidade é em diversas pontos mais inspirada por Sekiro: Shadow Die Twice, do que por Bloodborne em si. O que também não é pouca coisa para se almejar, já que Sekiro é um dos jogos mais refinados da From Software. E, apesar de Lies of P não ser estelar como os citados, ele chega muito perto, e por seus próprios méritos.
O primeiro ponto de destaque já nos primeiros minutos é a parte visual, tanto técnica como artística: a cidade de Krat é linda em sua decadência. E mesmo que o jogador possa escolher entre modo gráfico e performance, ambos são lindíssimos. Contudo, se você não escolher o modo performance você é maluco — diagnóstico grátis.
É de se esperar que jogos feitos com motores gráficos mais modernos e novas tecnologias de inteligência artificial para simular texturas e superfícies como Marvelous Design, AMD FSR e DLSS (Todos esses usados aqui), sejam cada vez mais deslumbrantes, mas também é notável que estúdios menores tem dificuldade em implementar uma visão específica muitas vezes mais por questões financeiras do que por qualquer outro motivo.
Levando isso em consideração, fiquei realmente muito impressionado com o que os estúdios sul-coreanos Round8 Studios e NeoWiz Games conseguiram alcançar com Lies of P em termos gráficos e também pela atmosfera que conseguiram criar. Às vezes Krat remete a Yharnam de Bloodborne, outras vezes ela lembra Rapture, de Bioshock, mas ela também cheira aos esgotos de Dunwall de Dishonored.
Por outro lado, apesar dos gráficos lindíssimos, esse é um ponto que nunca foi o chamariz para o público fã do gênero souls-like. O que importa mesmo é como a jogabilidade se comporta e o quão próximo do refinamento do combate da From Software um outro jogo consegue chegar. Parece puxa saquismo, mas a verdade é que é isso que jogadores e desenvolvedores que se aventuram nessa seara almejam no final das contas. Um estúdio não se torna a referência máxima do estilo, como a From Software, sem mérito ou com uma legião de imitadores baratos.
E é com muita satisfação que afirmo que Lies of P apresenta ao jogador um combate muito acima da média e tem sistemas auxiliares bem implementados que fazem ele se destacar no gênero de forma bastante positiva.
Muito próximo da importância do visual — que já elogiei bastante e que você pode conferir com seus próprios olhos através das imagens deste review (todas capturadas no meu PS5) —, está o que acredito ser um dos corações pulsantes de Lies of P: sua reimaginação da história do menino de madeira que queria ser humano.
É fascinante a adaptação distorcida e visceral que o estúdio conseguiu realizar de personagens do livro de Carlo Collodi como Antônio, Mangiafuoco, a Raposa e o Gato, a Fada de Cabelos Turquesa, Alidoro, os Coelhos Coveiros e diversos outros. Quem conhece a obra original vai se deleitar com as referências, e mesmo que elas sejam um extra direcionado a esse público, a narrativa aqui não se limita a atingir apenas ele. A história de todos os personagens é tão bem contada, cheias camadas e desdobramentos, que mesmo quem nunca leu uma linha de As Aventuras de Pinóquio (ou que só conheça a adaptação para filme da Disney ou o filme do Guilhermo del Toro) vai se deparar com uma narrativa cativante e incrível.
Diferente da maioria dos jogos inspirados por Souls, Lies of P tem uma história mais direta e, mesmo que ela também seja contada em parte por conversas com NPCs (todos com histórias excepcionais), a primeira impressão é que sobraria pouco para descobrirmos através da descrição de itens ou observação de cenários — como já é clássico do gênero — mas não é bem assim. Apesar da narrativa mais direcionada, a história por trás da história que você só descobre lendo cartas, jornais, cartazes, etc., foi feita para instigar o jogador a montar o quebra-cabeça narrativo dessa aventura, entender as suas nuances e ser recompensado por isso.
A narrativa de Lies of P é uma alegoria muito bem contada de como surgiu e acabou a própria Belle Époque na qual ele é tão inspirado: um período fervilhante de progresso científico, otimismo e agitação cultural que culminou em uma das maiores catástrofes do mundo: a Primeira Guerra Mundial. Todas as grandes invenções do período como fonógrafo, telefone, automóvel e avião foram usadas pela máquina de guerra ou em seu benefício. Santos Dummont, um dos grandes nomes da Belle Époque, nunca se recuperou ao ver sua invenção sendo usada para potencializar os esforços de carnificina a níveis jamais imaginados. Mesma culpa que alguns dos personagens do game carregam pelo que aconteceu com os habitantes de Krat.
A criação dos autômatos transformou a cidade em uma potência do desenvolvimento e do avanço científico do dia para a noite. Os robôs passaram a fazer todo o trabalho braçal, a vigilância da cidade e os afazeres domésticos enquanto as pessoas puderam se tornar bon-vivants — ou pelo menos a parte da população mais abastada que não perdeu seus empregos para os títeres.
Tudo isso era possível porque os autômatos foram construídos para obedecer regras básicas — inspiradas nas três Leis da Robótica do escritor Isaac Asimov — como não mentir, não ferir humanos e serem incapazes de atacar seus criadores. Mas, a partir de uma catástrofe (conhecida como Frenesi dos Títeres) as marionetes se libertam de suas cordas invisíveis e cometem uma chacina desenfreada em que poucos humanos sobrevivem. Os que escapam da sede de sangue robótica tem que lidar com uma misteriosa doença chamada Petrificação que transforma pessoas em verdadeiros monstros irracionais antes de converter seus corpos em carcaças vazias de pedras. Mas, o que causa tudo isso? E mais intrigante: esses eventos estão ligados?
Você não vai obter essa resposta aqui porque esse é um texto livre de spoilers, ora bolas. Mas o jogo responde satisfatoriamente todas essas questões, não deixa pontas soltas e ainda provoca o jogador com uma cena pós-créditos muito interessante e as possibilidades de um segundo jogo com outro personagem famoso da ficção é fantástica.
E se gráficos e história são primorosas, mecanicamente Lies of P tem uma das melhores movimentações e peso no combate que já vi em um souls-like desde o primeiro The Surge e Nioh. As armas realmente têm pesos diferentes, movimentações distintas e propriedades únicas para seus dois ataques especiais, chamados de Artes das Fábulas (uma mecânica bem similar a como funcionam as weapon arts de Dark Souls 3 e Elden Ring) que fazem com que o combate seja uma verdadeira delicia.
Para além disso a montagem de armas é outro elemento de peso em Lies of P, onde é possível usar a manopla de uma na lâmina de outra (ou vice-versa) e herdar uma dessas propriedades únicas. A variedade de armas no jogo já é muito boa, mas essa mecânica em particular cria ainda uma variação dentro de uma mesma classe muito interessante. Se você não gostar de um dos ataques especiais de uma arma você pode simplesmente alterá-lo ao mudar uma das partes ela por o de outra que aprecie mais. Eu fiz isso com várias armas e poucas vezes me arrependi.
Outra mecânica interessante são os diferentes braços legionários que Pinóquio pode equipar como vantagem em combate, a prótese padrão tem uma ataque básico forte que pode servir como um golpe extra que não usa estamina, outros braços liberados próximo ao início são um segundo em forma de um gancho que puxa inimigos ou armadilhas (a la Sekiro), e um terceiro que usa golpes eletrificados, ao qual os títeres são susceptíveis. Existem diversos outros que são adicionados ao longo da campanha, como um braço lança-chamas, um escudo, um que atira, entre outros. Não vou entrar em detalhes sobre cada um deles para que esse review não fique gigante, mas caso você se interesse por saber mais informações sobre as mecânicas ou dicas antes de começar Lies of P, escrevi um artigo para o Xbox Mania sobre isso que você pode acessar clicando aqui.
E se montagem de armas e uso do braço legionário são mecânicas muito importantes, aprender o quanto antes como funciona a janela de deflexão dos golpes dos inimigos, o famoso parry, é quase essencial. Essa inclusive é uma das minhas poucas reclamações do game. Sinto que o tempo para uma defesa perfeita (que não causa dano ao seu boneco) é curto em excesso, e como mencionado, apesar do visual bloodborniano ele se ampara muito mais na jogabilidade de Sekiro por conta disso, mas sem ter essa mecânica aqui tão refinada como lá.
Não confunda alho com bugalhos: não estou dizendo que o parry não funciona, ele com certeza funciona — e é uma maravilha quando encaixa. Mas como o tempo de resposta é pequeno, pode ser muito difícil tirá-lo da cartola em todas as situações. E isso será uma barreira para muitos e uma possível causa de uma taxa de abandono relativamente alta (previsão).
Claro, existem outras mecânicas defensivas como desviar, bloquear, backstab e até mesmo correr (risos), mas o game dá muita enfase para que você aprenda a defletir os ataques inimigos tanto que, propositalmente, é preciso comprar uma melhoria para que o desvio seja realmente efetivo, o que só será possível assim que o jogador derrotar os 3 primeiros Chefes, 2 deles em que o parry é importante para vitórias mais tranquilas. Se isso não é forçar a mão do jogador em uma direção eu sou um Jumento Ensandecido (esse sim um chefe que não precisa de parry para ser derrotado).
Falando em Bloodborne novamente, um dos sistemas mais legais que ele apresenta é no caso de dano sofrido ao contrário do que se esperava até então de um Souls, ao invés de se retrair em direção à segurança, o jogo te incentivava a ser agressivo e recuperar parte dessa vida atacando o inimigo. Isso está presente em Lies of P também, de uma forma um pouco diferente: você só consegue recuperar a vida perdida ao bloquear, seja por conta de uma defesa contínua ou por um parry mal sucedido. Mais uma dinâmica que sugere ao jogador sempre mantenha a guarda alta e, consequentemente, tente encaixar alguns parry’s marotos.
Outra mecânica interessantíssima que envolve risco recompensa são como os frascos de recuperação de vida funcionam. Ou melhor, como o esgotamento deles funciona. Seu personagem tem as cargas normais que são recuperadas ao descansar no equivalente a bonfire do jogo, os stargazers, contudo durante o combate caso o jogador precise consumir todas suas curas existe a possibilidade de recuperar uma “extra” sendo justamente o mais agressivo possível já que cada golpe aplicado em um inimigo vai preenchendo um dessa cargas de um dos seus frascos.
Como é possível recuperar apenas um por vez isso cria uma dinâmica que pode prolongar a sua permanência em batalha sem torná-la fácil demais, caso você pudesse ter mais de um de volta em uma mesma luta. É possível encher seu frasco, recuperar parte da sua vida e começar a encher ele novamente. Não é algo único e ponto, e isso que torna essa mecânica única. Por outro lado, quanto mais agressivo mais arriscado se torna o combate. E gerenciar sua vida com apenas uma unidade de recuperação deixa o jogador, ou pelo menos me deixou, na ponta da cadeira.
Esse texto inclusive demorou a sair porque eu não consigo parar de jogá-lo. Conquistei o troféu de platina da versão de PlayStation 5 dele e estou caminhando para conseguir ela na versão de PS4. Isso demonstra o quão pouco eu gostei do jogo. E se você é assinante do serviço do Xbox Game Pass ele está incluso no lançamento na sua assinatura sem custos adicionais. Um excelente negócio se você me perguntar.
Além de tudo isso que escrevi aqui, existem diversos outros sistemas auxiliares que não vou entrar em detalhes porque é muito interessante descobrir por conta própria, mas não vejo nenhuma possibilidade caso você se arrisque em se aventurar por Lies of P que você saia indiferente dele — caso goste do gênero souls-like, claro.
Ele tem falhas mínimas, mas o conjunto da obra é tão fantástico que é impossível não recomendá-lo aqui.
E eu jamais mentiria para você, caro leitor.
A análise de Lies of P foi escrita com base em uma cópia de review gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do game. Também disponível para PlayStation 4, Xbox One, Xbox Series, PC e Mac.