Análise Beautiful Desolation (PS4)
A ambientação e ficção científica complexa de Beautiful Desolation são incríveis, mas ele é pouco amigável com quem tem pouca experiência com adventures.
Eu nunca fui um jogador de PC. E mesmo sendo consenso que games geralmente são melhor otimizados para computadores, nunca consegui me acostumar a jogar com teclado e mouse, por pura inabilidade mesmo.
O fato dos meus notebooks mal conseguirem rodar programas leves, graças ao baixo investimento que fiz neles, também pesou muito para que minha formação como jogador não tivesse a disciplina PC Games como obrigatória.
E mesmo sendo títulos mais simples e que exigiriam pouco das carroças que tive, acabei passando batido pelo auge dos adventures e point’n clicks de empresas como a LucasArts e Sierra Entertainment.
Recentemente, e muito por influência dos meus camaradas do podcast Super Amibos e do seu excelente canal paralelo no YouTube The Backtracker, resolvi corrigir algumas dessas falhas e tenho experimentado, e gostado de, vários títulos do gênero, indo de clássicos como Grim Fandango e Full Throttle, mas passando por alguns mais recentes como Distraint e Chicken Police.
E o último que chamou minha atenção e que acaba de chegar aos consoles, depois de estar disponível para computadores há um ano, foi Beautiful Desolation, da desenvolvedora The Brotherhood, publicado pela Untold Tales.
Beautiful Desolation é um adventure isométrico lindo e uma ficção científica complexa, riquíssima e muito intrigante. E eu estaria mentindo para você se dissesse que entendi ela completamente. Precisaria revisitar alguns trechos ou reviver as horas que passei nessa jornada para entender todas suas várias reviravoltas e teorias que envolvem viagem no tempo, inteligências artificiais sencientes, alienígenas e intrigas políticas.
Contudo, um bom sci-fi, na minha opinião, não é aquele que entrega todas as respostas de bandeja, mas um que te faz pensar e preencher as lacunas com suas próprias interpretações. Inclusive, abordando outros temas que não os da ficção científica propriamente dita. E Beautiful Desolation faz isso muito bem.
Em uma camada superficial o game é sobre um mundo distópico em que uma estrutura alienígena surge misteriosamente nos céus da Africa do Sul nos anos 70. Mas ele é muito mais que isso.
Essa base extraterrestre, chamada Penrose, é explorada pelo governo e militares, e o fruto desses estudos colaboram para que a tecnologia avance consideravelmente. O evento Penrose foi inofensivo para a maioria das pessoas e apesar dele ter mudado a vida dos seres humanos para sempre, já nos adaptamos a sua presença no horizonte. Com exceção do protagonista, Mark Leslie, para quem o dia do surgimento da estrutura foi o começo do fim.
Como mencionei, apesar da história ser sobre alienígenas e tecnologia, ela vai muito além e aborda temas pesados como alcoolismo, depressão e é, sobretudo, sobre relações humanas e como lidamos emocionalmente com perdas e escolhas.
Acompanhamos aqui a evolução da relação de Mark com seu irmão Don, que resolvem explorar Penrose para obter respostas sobre um determinado evento, acabam sendo vítimas de um acidente temporal e enviados a um futuro pós-apocalíptico em que raça humana como conhecemos acabou.
Essa nova sociedade dividida em estruturas tribais têm suas próprias regras, crenças e espécies. Algumas são dominadas por máquinas, outras por formas de vida alienígenas e outras são híbridas, em que parte da consciência humana sobreviveu através da sinergia com inteligências artificiais.
Durante esse acidente dimensional Mark e Don conhecem Pooch, uma cadela robô que serve como guarda em Penrose, que acaba sendo sugada junto com vocês para essa nova realidade. O trio então precisa se aliar para conseguir voltar para a linha do tempo normal. Pooch não é só uma robô, e muitos dos dilemas morais e sentimentos são trazidas à tona através das interações que você tem com ela, ou mesmo iniciados pela mesma.
Beautiful Desolation também dá liberdade ao jogador para escolher a forma como vai agir durante os diálogos que tem com NPCs, podendo, inclusive, ser rude com quem encontrar pelo caminho, se quiser. E você encontrará muitos personagens, cada um com sua história e missões secundárias. Sejam das tribos Chiznyama, Hanasi, Fley, Mongrels, Soldados Agnates, ou de qualquer outra, todos desempenharão papéis na sua história. E escolher com quais você se aliará sela o destino dos demais. Não irei aprofundar nisso por conta de spoilers, mas você já deve ter pego a ideia.
Com influências abrangentes indo de Fallout 2 e Disco Elysium à filmes e séries como Distrito 9 e Stargate, Beautiful Desolation brilha de igual para igual com essas obras em vários pontos, e em outros nem tanto. Diferente dos jogos citados, ele não é um RPG e não existe combate para se preocupar. Ele é puramente um adventure point-and-click, inclusive em algumas das particularidades do gênero que eu não gosto, como pixel hunt.
Para quem não sabe do que estou falando, ou não tem experiência com esse tipo de game, pixel hunt é quando é preciso explorar um cenário milimetricamente, vasculhando cada canto para encontrar onde deve-se clicar, ou até entender qual ação, por mais absurda que pareça, deva ser realizada em uma determinada situação. Em muitos casos é preciso pensar de formas muito específicas para entender como a mente do desenvolvedor funcionou ali.
E por mais que, finalmente, encontrar a solução proporcione o chamado momento eureka, quando tudo fica claro e faz com que você se sinta um gênio, eu odeio essa característica dos adventures.
E pensando na amplitude do mapa de Beautiful Desolation, que é dividido em inúmeras regiões e com terminologias próprias, é frustante não saber para onde ir ou mesmo do que se trata um item específico com nome esquisito que um NPC requisitou para uma missão secundária, que pode ou não impedir o seu avanço.
Durante a minha jornada de quase 12 horas no título, umas 3 ou 4 dessas foram vagando de região em região, procurando o que fazer. E por mais que eu estivesse imerso nesse mundo, e achando tudo muito interessante, essas partes me frustaram mais do que o prazer que tive ao entender quais itens combinar ou com quem falar para progredir.
Não desisti por pouco, e também porque não gosto de escrever reviews de jogos que não terminei. Mas no final, fiquei feliz por não ter abandonado o game e ter encerrado minha jornada com Mark, Don e Pooch do jeito que deveria ser. Juntos até o fim.
Beautiful Desolation é lindo, tem uma história excelente, uma dublagem muito boa de todos os personagens, além de uma trilha sonora fenomenal, assinada por Mick Gordon, o mesmo compositor de DOOM Eternal e Wolfenstein, e para quem já rasguei muita seda no meu review de Eternal. Diferente dos jogos citados e seu heavy metal brutal, aqui ele faz um trabalho super diferente do que eu estava acostumado a ouvir dele e cria uma trilha étnica, tribal e cheia de sintetizadores, que casou muito bem com a ambientação.
A jogabilidade foi bem traduzida para os consoles e jogar no controle não parece estranho, mesmo que em alguns trechos fique evidente que a facilidade de apontar e clicar tornariam a movimentação mais fluída e a exploração mais dinâmica.
Os dois únicos grandes defeitos do game, para mim, foram essa ausência de indicativos mais diretos do que fazer ou para onde ir, e a falta de uma tradução para o Português do Brasil, que vai tirar o maior trunfo do jogo, que é a sua narrativa, para quem não domina a língua inglesa.
Se esses problemas não são um impedimento, ou se você está carente de uma boa ficção científica e tem uma grana sobrando, pode embarcar nessa aventura sem medo. Você vai gostar.
P.S.: Se gostou da arte ou ficou interessado na trilha sonora, aqui nesse link oficial da Untold Tales você pode baixar as músicas e um artbook de 86 páginas sobre o mundo do game. Não precisa agradecer, só compartilhar.
A análise de Beautiful Desolation foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do game, que também está disponível para Windows e Nintendo Switch se preferir.