Análise Blasphemous (PlayStation 4)
Blasphemous é um Metroidvania espanhol que utiliza arte sacra e simbolismo católico como inspiração para compor uma aventura brutal.
Culpa. Esse é o tema principal desse Metroidvania desenvolvido pela The Game Kitchen e publicado pelo estúdio Team 17, tema que foi uma grata surpresa por estar ao mesmo tempo alinhado com a estética do jogo e quase totalmente ausente do material promocional que apostou acertadamente na direção de arte e na sua iconografia violenta e herética. Blashphemous possui forte influência das obras do pintor Francisco de Goya, e na subversão de obras sacras como Pietà de Michelangelo que recebe esta bonita homenagem:
ICYMI: @IGN have 7 minutes of #Blasphemous gameplay, including a fight against the Ten Piedad: https://t.co/8wDb53NPcq
Repent and Wishlist on Steam: https://t.co/tY7MQzEurB#IndieDevHour #PixelArt pic.twitter.com/LxnvWK9DTy
— Blasphemous (@BlasphemousGame) July 3, 2019
Self-Immolate
Em Cvstodia, – cidade onde se passa a história – “Milagre” é o nome da maldição que caiu sobre todos e cabe ao único sobrevivente do Massacre da Tristeza Silenciosa, O Penitente, encerrar tal maldição, e se a influência visual do jogo são referências católicas, vários jogos podem ser apontados como influência na parte de jogabilidade, do Prince of Persia original a Dark Souls. Essa última é até bem óbvia e pode ser notada na estrutura dos checkpoints, aqui chamados de Prie Dieu – uma peça de móvel com apoio para ajoelhar-se – e nos frascos biliares que fazem as vezes dos famosos Estus. No início da jornada, o jogador recebe a missão de eliminar três criaturas para que, com a prova das mortes, possa abrir um grande portão de bronze também conhecido como Portão Proibido, e assim encerrar O Milagre.
O Penitente é um guerreiro ágil e habilidoso com sua espada, chamada apropriadamente Mea Culpa, capaz de partir os inimigos e alimentar a sua barra de Fervor, energia utilizada pelas habilidades especiais do herói (por falta de epíteto mais adequado). Aprendemos essas mecânicas e parte do contexto do jogo logo no início por meio de pequenas cutscenes maravilhosas e quase mórbidas com uma arte em pixel lindíssima. A obtenção da espada, a oferta dela no altar Mea Culpa, a forma como conseguimos aumentar nossa barra de vida certamente são cenas que não sairão da cabeça do jogador tão rápido. Nesses momentos o título do jogo cabe como uma luva, sem qualquer dúvida.
A agilidade do Penitente faz com que o avanço no jogo seja satisfatório a ponto de nos deixar sempre instigados a passar só por mais uma tela, encontrar o próximo atalho, o altar que antecede os chefes ou a próxima área. Isso não significa que o jogo seja fácil pois é complicado dominar os controles de início e mesmo tendo uma boa quantidade de movimentos e habilidades à disposição, levará tempo até habituar com a distância dos pulos ou com o pequeno balanço que o Penitente sofre ao se pendurar em superfícies verticais. A boa notícia é que aprendemos essa habilidade logo na segunda ou terceira área do mapa em um cenário com vento (um abraço pro Donkey Kong 2) capaz de treinar os reflexos do jogador para o resto do jogo.
Reza
Uma das características mais interessantes dos jogos nesse estilo é a forma como eles incorporam os elementos de RPG numa dungeon vertical. Melhor dizendo, como o estilo clássico do Zelda pode assumir formas distintas: Castlevania: Symphony of The Night (que é a principal influência de Blasphemous) fez do castelo seu calabouço; Resident Evil colocou zumbis e mistério em uma mansão tridimensional e Blasphemous repete a fórmula clássica de exploração livre porém gradual, com evolução do personagem e resolução de problemas para atender aos NPCs.
As áreas do mapa não possuem muitos quebra-cabeças no sentido clássico e em vez disso, cada lugar é um pequeno labirinto com atalhos que precisam ser desbloqueados. É crucial que a movimentação seja ágil porque a exploração é a raiz das maiores frustrações proporcionadas pelo jogo, principalmente porque as instruções dos personagens espalhados pelo mundo são vagas. Se a missão de derrotar os três primeiros chefes é bem óbvia, prepare-se pois nada mais será. Confesso que fui ingênuo de não comprar todos os itens à venda em algumas partes da cidade pois um deles teria me poupado algum tempo mas tirando uma chave cuja utilidade é óbvia, outros itens como o Cálice de Versos Invertidos ou o Ovo da Deformidade são um enigma mesmo com alguns parágrafos de descrição e história escritos sobre eles no menu. Então, se Blasphemous tem um ponto negativo é que ele nos impõe alguns obstáculos e em certos momentos não dá todas ferramentas para ultrapassá-los. Pelo menos não de bom grado.
Existem várias categorias de coletáveis espalhados pelo cenário, Fragmentos de Ossos de pessoas cujas ações foram relevantes para o culto ao Milagre – que na verdade são os apoiadores do projeto no Kickstarter; Relíquias que garantem habilidades passivas ao serem inseridas em um dos três Corações da Mea Culpa; Rezas, que dão poderes diversos ao Penitente e gastam fervor e Contas de Rosário que alteram parâmetros do jogador como resistência a fogo, por exemplo. Tudo isso fica disposto no menu do jogo e apesar de ser uma boa quantidade de itens para aprender a usar, não é nem de perto tão confuso quanto os itens das missões passadas pelos NPCs. O menu acaba se tornando mais prático quanto mais avançamos no jogo e só é uma pena que a troca de Contas, Relíquias e Rezas não possa ser realizada fora do menu, pelos direcionais, por exemplo. Escolher bem quais itens equipar pode mudar o rumo da luta com algum dos chefes.
Saturn, the Bringer of Old Age
Blasphemous me fez perder muito tempo. Passei pelo menos dois dias revirando as áreas que eu já havia completado atrás de relíquias perdidas ou dos bebês enjaulados espalhados pelo mapa. Gastei horas procurando por onde avançar até a área seguinte depois de vencer o desgraçado do Expósito, Scion of Abjuration e voltar para a Biblioteca das Palavras Negadas lugar onde passei a maior quantidade de raiva desde que joguei a Torre do Relógio no castelo invertido de SoTN, graças aos malditos fantasmas (não pise nos livros), mas isso sempre me aconteceu. Já fiquei perdido em Axiom Verge, no próprio SoTN, em Dark Souls II e Zelda: a Link to The Past (nunca me perdi em Gato Roboto) só que isso nunca foi demérito para essas obras já que assim como elas, em Blasphemous a soma dos elementos artísticos e a jogabilidade primorosa falam muito mais alto do que os pequenos problemas.
Há tantos outros elementos que enriquecem a experiência como o auto-flagelo que aumenta seu Fervor mas custa Lágrimas de Expiação (a moeda corrente do jogo), as melhorias de vida e fervor espalhadas pelo mapa e como perdemos fervor e acumulamos culpa a cada morte até que não nos reste nada dessa barra caso não cheguemos ao local da morte ou em um confessionário. A relação dinâmica entre temática e jogabilidade é um primor.
Blasphemous é uma mistura de influências vinda de grandes títulos lançados nos últimos vinte anos da indústria de jogos. Fico feliz que seu Kickstarter tenha dado frutos porque é um jogo obrigatório para quem gosta de qualquer um dos títulos mencionados neste texto. Recomendadíssimo!
P.S.: 1) o jogo está todo em inglês, falas e texto e não é possível mudar; 2) Se você tem um PlayStation Vita, o jogo roda muito bem remotamente, apesar de apresentar uma queda sutil na taxa de quadros.