Análise Demon’s Souls (PlayStation 5)
Demon’s Souls traz a fórmula de sofrimento original do gênero Souls para o PlayStation 5 em um remake deslumbrante que inaugura a nova geração!
O ano da graça de 2009, quando Demon’s Souls foi originalmente lançado para PlayStation 3, foi testemunha de como decisões ruins podem ecoar por vários anos e moldar uma parte da indústria vital dos videogames, trazendo consequências imprevisíveis como resultado da batida das asas de uma borboleta maldita sob a luz do luar.
Mas pra resumir isso, precisamos voltar um pouco mais no tempo (afinal, jogos não ficam prontos em umas semanas) quando a então desconhecida FromSoftware começou a desenvolver Demon’s Souls, uma espécie de sucessor espiritual para sua franquia King’s Field. Ocorre que alguém no estúdio ficou empolgado com o lançamento exclusivo no PS3 e não prestou muita atenção na parte do contrato que dizia que a propriedade intelectual (IP) não seria do estúdio, mas da Sony.
Mas nada como uma decisão pior ainda para amenizar as coisas. Demon’s Souls foi lançado inicialmente no Japão e, embora a recepção pela crítica tenha sido ótima, as vendas foram conturbadas e o então presidente da Sony Interactive Entertainment, Shuhei Yoshida, não acreditou no potencial de uma sequência e decidiu que a FromSoftware poderia criar livremente seu próximo jogo, sem exclusividade no PlayStation. Alguns anos depois, o estúdio japonês colocaria no mundo nada menos do que Dark Souls, sucessor espiritual do jogo de 2009 e muito provavelmente a franquia mais relevante e influente na indústria na década de 2010-2020.
Para tentar amenizar o erro estratégico, a Sony encomendou Bloodborne, essa sim, exclusivo do PlayStation 4 e agora relança Demon’s Souls de forma exclusiva no PlayStation 5 entregando o desenvolvimento para a BluePoint Games, responsável pelo remake de Shadow Of The Colossus, entre outros.
A cidade dos boletos
Diferentemente dos jogos posteriores, Demon’s Souls possui uma premissa bem mais simples. Boletaria era um reino próspero até que um dia um demônio fez cair uma névoa densa sobre sobre a cidade, trazendo outros demônios e aprisionando a população para sempre. O objetivo do jogo é matar os demônios e libertar Boletaria, pois esse período sem boletos para pagar não faz nada bem para a economia local.
Se você já jogou Demon’s Souls no PlayStation 3 ou qualquer um dos Dark Souls, já estará familiarizado com o gameplay e as mecânicas envolvendo almas e a forma que o enredo do jogo é apresentado.
Se você nunca jogou nenhum deles, eu explico: resumidamente, Demon’s Souls é um RPG de ação, em terceira pessoa, com jogabilidade de combate muito precisa. As ações dos personagens (ataque e defesa), são limitadas pela barra de energia/vigor e a cada morte, o jogador perde todos os pontos de experiência (aqui chamados de “almas”) mas essas podem ser recuperadas em uma tentativa; se morrer mais uma vez, as almas são perdidas para sempre. Certamente você já viu essa dinâmica em outros jogos como Nioh, Jedi Fallen Order e Mortal Shell, por exemplo. Essa dinâmica de risco e recompensa foi inaugurada em Demon’s Souls e se tornou a base do que concebemos atualmente como um RPG de Ação moderno.
A Bluepoint Games manteve todos os aspectos de jogabilidade do game original, o que demonstra como Demon’s Souls era um jogo à frente de seu tempo, pois as mecânicas inauguradas lá em 2009 continuam atuais. Na realidade, não fosse pelo conhecimento generalizado de que se trata de um remake, Demon’s Souls passaria facilmente como o mais recente título do gênero “Souls”, com tudo que há de mais moderno em mecânicas, desafio e outros elementos que identificam o pertencimento do jogo à série, como a narrativa vaga, as mensagens assimétricas trocadas entre os jogadores e o multiplayer peculiar, que obedece regras próprias dentro do universo do jogo.
Demon’s Souls traz uma mecânica de combate muito precisa e implacável que prepara o jogador para os desafios das fases futuras, sempre mais difíceis. Há quem diga que os jogos da série não sejam difíceis, mas apenas justos: você recebe do jogo o resultado do tempo investido no aprendizado de como tudo funciona. Jogar de forma displicente e casual é quase um convite para a frustração, pois você precisa aprender com cada erro cometido, sem que o jogo pegue na sua mão e ensine onde foi que errou.
Ligar o modo foto na luta contra chefes permite capturar os momentos antes da desgraça acontecer.
Décadence Avec Élégance
Eu sou fascinado pelos jogos da série Souls. Confesso que tenho muita dificuldade em superar o desafio proposto nos jogos, mas isso se deve à minha teimosia em jogar do jeito errado, algo que pretendo corrigir. Ainda assim, não canso de me impressionar com a beleza decadente nascida da mente certamente perturbada do diretor Hidetaka Miyazaki. Essa beleza distorcida é reverenciada pela incrível atualização gráfica apresentada pela Bluepoint. Honestamente, me faltam adjetivos para elogiar o visual do jogo, que conta com um detalhamento sem precedentes na série. As texturas dos cenários e objetos são incrivelmente detalhadas e esse apuro visual passa pelos modelos de personagens e como estes se comportam e interagem com mundo, inclusive nas expressões faciais.
O level design também é primoroso. Inclusive, a série Souls é conhecida pelos intrincados labirintos criados e como tudo é conectado por atalhos que são desbloqueados na medida em que avançamos. Embora aqui ainda não existem as tão amadas fogueiras para que o jogador possa salvar o progresso, existe um rascunho disso com as “Arquipedras”, checkpoints que ficam disponíveis ao final de cada trecho dos mundos. Inclusive, se Demon’s Souls pode ser considerado um rascunho do que é Dark Souls, também é possível perceber trechos da mesma linguagem de design presente em Bloodborne com suas criaturas sobrenaturais e sobretudo no mundo central por onde podemos acessar todas as fases, chamado aqui de Nexus. É no Nexus (deslumbrante de lindo) que podemos subir de nível e utilizar os serviços do ferreiro, além de descobrir mais do folclore desse universo, ao conversar com os NPCs.
É inegável que as escolhas de design estabelecidas em Demon’s Souls serviram de base para os jogos futuros da FromSoftware, mas pessoalmente gostei muito da inexistência do modo/estado de personagem “Vazio” (Hollow). Aqui o personagem assume a forma corpórea (equivalente ao estado humano de Dark Souls) ou, caso morra, volta em forma de “Alma”. Me agradou essa dinâmica, pois o nosso personagem mantém-se tal como foi criado, sem uma forma zumbi que, particularmente, sempre achei horroroso. Outra diferença bastante interessante está na utilização de ervas de cura para recuperar a vida do personagem, que pode inclusive ser “farmado”, sem a limitação do “Frasco de Estus”. Mas se você pensa que isso torna o jogo mais fácil, pode esquecer.
O design de som também é impecável, cumprindo papel essencial na imersão no mundo sombrio de Demon’s Souls, com ruídos, grunhidos, gritos que incomodam, aumentando a tensão conforme avançamos. O nível de cuidado é tão alto que podemos distinguir até mesmo os diferentes ruídos produzidos pelas mais variadas superfícies por onde o personagem caminha. Para uma maior imersão, o uso de fones de ouvido ou headset de alta qualidade é essencial.
Existe ainda um obscuro sistema de modificação do mundo, baseadas na “Tendência do Mundo” e “Tendência do Personagem”, onde as ações dos jogadores transformam as fases, abrindo atalhos e desbloqueando itens e armas, conforme a tendência esteja mais próxima do chamado “Puro Branco”. Por outro lado, quanto mais escura for a tendência do mundo/jogador (por meio de mortes na forma corpórea e assassinato de NPCs), mais o jogo se torna desafiador, por que alguém imaginou que a dificuldade não estava tão exigente. Não há como não lembrar novamente de Bloodborne com sua pontuação de discernimento que também revela elementos obscuros no jogo, na medida em que a pontuação aumenta. Como eu disse antes, Demon’s Souls estava à frente de seu tempo.
Não existe prazer sem sofrimento
Tem que chegar com sangue no olho! #DemonsSouls #PS5Share pic.twitter.com/gTLuyy9fgq
— tiagohardco – Canal #SóCurte! (@tiagohardco) December 26, 2020
A experiência de Demon’s Souls é uma mistura de frustração e satisfação absoluta. A cada morte o jogo permite que possamos reavaliar as estratégias empregadas para superar o desafio proposto. Existe um equilíbrio delicado entre arriscar o avanço, correndo o risco de perder as almas coletadas ou buscar subir as estatísticas do personagem aos poucos, em uma dinâmica de que adequa à abordagem escolhida, mas sem perder de vista que quanto maior for o risco, maior é a recompensa.
Demon’s Souls é um título obrigatório para aqueles que gostam do gênero e inaugura em grande estilo a nova geração de Videogames. A Sony tirou a poeira de uma IP que estava guardada em alguma prateleira e, em uma aposta certeira, relançou o jogo que inaugurou o gênero “Souls” com um nível absurdo em todos os aspectos alcançado por meio da Bluepoint Games. Embora muitos digam que Demon’s Souls é um jogo de nicho, eu penso que todos que puderem devem jogá-lo, nem que seja para entender de onde vieram grande parte das convenções de gameplay que atualmente estão vigentes nos jogos de ação e RPG na indústria do entretenimento eletrônico.
A análise de Demon’s Souls foi escrita com base em uma cópia digital gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do jogo.
Nós do Conversa de Sofá acreditamos que o videogames são uma mídia poderosa e revolucionária e que somos muito privilegiados em poder ter acesso a essas obras desenvolvidas por pessoas talentosas do mundo todo. Por isso, nesta época em que somos ameaçados pelo Covid-19, fique em casa e aproveite a oportunidade para jogar muito. Ficando em casa você não só pode apreciar os melhores jogos como também pode contribuir para que possamos voltar à nossa rotina o mais rápido possível, além de salvar vidas.