Análise Martha is Dead (PS4 e PS5)
Martha is Dead é um jogo de horror psicológico pesado que mistura e distorce as linhas que separam sonho, pesadelo e realidade.
Martha is Dead é apenas o segundo jogo do estúdio italiano LKA, mas os desenvolvedores, celebrados por seu título de estréia The Town of Light, e seu novo game foram motivo de destaque na imprensa especializada nas semanas que antecederam seu lançamento.
E esse burburinho todo — que serviu como divulgação gratuita — se deu por uma razão que o estúdio não esperava ou mesmo desejava: para ser lançado nas plataformas Sony ele teria que ser modificado, e alguns trechos de jogabilidade suprimidos.
E, embora no comunicado oficial via twitter divulgado pela Wired Productions, publicadora de Martha is Dead, não se use a palavra censura, para bom entendedor meia palavra basta.
Considerando que as versões de PC e Xbox não sofreram mudanças, toda a condução da situação por parte da divisão PlayStation foi no mínimo esdrúxula. Até porque as partes censuradas ainda acontecem na história. O jogador assiste os trechos como se fossem cutscenes, mas não controla o que a personagem faz.
E, embora toda essa confusão tenha feito Martha is Dead entrar no radar de mais pessoas e levantado debates interessantes sobre a real função da classificação indicativa, visto que o jogo já possui selos Mature 17+ no ESRB (Entertainment Software Rating Board) e 18+ no PEGI (Pan European Game Information), para o time da LKA ter que mutilar sua obra e visão artística dessa forma não deve ter sido nada fácil.
E, por falar em mutilação…
Martha is Dead é um jogo de horror psicológico em primeira pessoa que trata de temas desconfortáveis e pesados, como aborto, violência psicológica, saúde mental, assassinato, transtorno de personalidade e abuso familiar. Então se algum desses assuntos por ventura possa ser gatilho de algum trauma, ele talvez não seja recomendado para você.
Além disso, esse review conterá imagens que podem ser agressivas para algumas pessoas, então é recomendado que você desabilite as imagens no seu navegador caso tenha problemas com cenas mais fortes.
Antes de mais nada, é bom deixar claro que Martha is Dead é predominantemente um jogo de horror, e não necessariamente de terror.
Quem está a procura de algo mais assustador, repleto de sustos e outros clichês do gênero vai encontrar bem pouco disso aqui. E, mesmo que os conceitos de horror e terror se misturem, o público de um pode não ser o de outro, e o título talvez decepcione aqueles que estão em busca majoritariamente dessa segunda opção.
O terror é o sentimento que causa medo, assusta e gera a expectativa de algo ruim prestes a acontecer, enquanto o horror está mais relacionado à resposta de repulsa e ao choque que esse acontecimento provocou. Em resumo, o terror é baseado na tensão, no medo puro e simples, mas que acaba quando o susto acontece. Já o horror é mais gráfico e desagradável, se baseando no desconforto que o jogador sente ao ser obrigado a lidar com uma situação.
O terror agride de uma vez. O horror te consome. E, como representante do horror, Martha is Dead é espetacular.
Martha is Dead conta a história de duas irmãs gêmeas, Martha e Giulia, e como o assassinato de Martha transforma a vida de Giulia em um poço de dor, culpa e arrependimentos.
O jogo é ambientando na Itália no final da Segunda Guerra Mundial, e mesmo que isso proporcione um cenário rico e dê corpo a trama, o papel do conflito em si é secundário e explorado apenas através de cartas, jornais e notícias no rádio.
Por outro lado, o pano de fundo de guerra serve para criar uma linha de especulação sobre a morte da garota ter cunho político, visto que o pai das meninas é um general do partido nazista. Mas essa não é a única pista a seguir, e Giulia irá até as últimas consequências para descobrir quem matou Martha, mesmo que isso faça que ela tenha que flertar com o sobrenatural.
A ambientação bucólica e interiorana da Toscana dos anos 40 é fantástica, e o trabalho de recriação de ambientes, estilos arquitetônicos, mobília e itens decorativos do século passado é fenomenal. A trilha sonora e dublagem em italiano colaboram para que a imersão fique completa.
Além disso, para criar uma atmosfera sinistra são incorporados na trama elementos de religiosidade e superstições de forma bastante natural.
E é combinando esses recursos a trechos que transcendem a realidade, seja através de sonhos, premonições ou respostas mentais ao trauma, que a narrativa intrincada, ambígua e de várias camadas de Martha is Dead é contada.
Muitas vezes é difícil diferenciar o que é realidade do que não é, e isso cria interpretações abertas em relação ao destino de Martha, e consequentemente de Giulia. Confundir Giulia é ao mesmo tempo confundir o jogador, e esse labirinto de conclusões desfeitas, reviravoltas e tensão constante são o charme do jogo.
E a forma com que a narrativa é construída joga um holofote sobre assuntos que não são tão frequentemente abordados em videogames de uma forma real e cruel, mas, de certa forma, lúdica ao mesmo tempo.
Apesar de ser um game de horror, com cenas pesadas e angustiantes, existem também momentos de beleza. Parece errado e estranho apreciar a paisagem da região durante o dia, sabendo que algo espreita na floresta a noite, depois de acontecimentos tão trágicos, mas é inevitável.
A jogabilidade de Martha is Dead é bastante simples e consiste em explorar cenários, interagir com objetos específicos e usar sua máquina fotográfica para encontrar pistas, tanto sobre a morte de Martha como do passado da região, incluindo seus mistérios sobrenaturais.
Os desenvolvedores criaram um simulador simplificado de fotografia antiga dentro do jogo super interessante. É preciso escolher o filme, a lente, a abertura, a exposição, o foco e os acessórios corretos para conseguir fotografar em cada situação os pontos de interesse que possibilitam o avanço na história. Mas não é só isso: após tirar as fotos é preciso revelar as imagens em um quarto escuro.
O legal disso tudo (para quem é curioso, como eu) é que apesar das etapas terem sido descomplicadas para se manter um bom ritmo de gameplay, o jogo faz questão de explicar sobre cada etapa do processo quando o jogador tem contato com elas a primeira vez.
É fácil compreender as funções da imersão do papel no revelador, o enxague, o banho neutralizante, e as outras fases que eram necessárias em um passado não muito distante quando não exista a impressão digital de fotos.
Os amantes de fotografia com certeza vão adorar esses segmentos já que além do exposto acima, a câmera usada, uma Rolleicord 1940, é um representação fidedigna a máquina real, muito apreciada por colecionadores.
Existem outros mini-games como o uso de um telégrafo para enviar código morse, um envolvendo cartas de tarô, usadas para invocar a Mulher de Branco e realizar previsões, e um teatro de marionetes. Contudo, diferente do segmento de fotografias, os outros três são pouco utilizados, o que é ótimo no caso do telégrafo (que é bem chato), mas que poderia ter um papel de mais importância e destaque no caso do tarô. Já o teatro de marionetes, que apenas aparece quase no final, me deixou dividido.
As histórias contadas através dos bonecos são as partes que me deixaram mais incomodado — até nauseado — em todo o jogo. E, conseguir esse efeito usando apenas marionetes e uma boa narrativa, levando em conta que existem trechos explícitos, violentos, e que são graficamente impactantes não é pouco.
O problema nesse caso é que, apesar de ser simples, controlar os bonecos e escolher os diálogos é ruim no controle, mas que talvez seja mais fácil jogando com teclado e mouse. Nada que estrague a experiência, mas poderia ser mais intuitivo para quem vai jogar em consoles.
O final de Martha is Dead é ambíguo e aberto a interpretações, e mesmo após terminá-lo e refletir sobre seus acontecimentos ainda não consigo chegar a uma resposta que me satisfaça por muito tempo. Hora tenho certeza, hora duvido.
Acredito que esse tipo de final vai agradar e desagradar as pessoas com a mesma intensidade, e eu, particularmente, ainda não me decidi de que lado estou. Mas, parafraseando o próprio Diretor Criativo do LKA, Luca Dalcò em uma mensagem a imprensa: “Estou ansioso para ver as reações ao jogo, quaisquer elas sejam, desde as positivas até as menos positivas ou negativas. O único feedback que espero nunca ver é a indiferença”.
E, realmente, de forma alguma saio indiferente a Martha is Dead, e, com certeza, quando você jogar também não sairá.
A análise de Martha is Dead foi escrita com base em uma cópia de review gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do game. Também disponível para Xbox One, Xbox Series X|S e computadores.