Análise Marvel’s Spider-Man: Miles Morales (PS4)

Com ritmo de jogabilidade e narrativa excelentes Marvel’s Spider-Man: Miles Morales consegue elevar a barra de qualidade do primeiro jogo mesmo com uma duração relativamente menor.

Eu cresci nos anos 90 e naquela época o nerd era muito diferente do que é hoje. Na verdade, a própria palavra não era muito conhecida e o mais próximo que existia do conceito do que veio a se tornar o nerd de cultura pop atual era alguém estudioso, tímido, impopular e com interesses que a maioria achava estranho.

Essas pessoas eram chamadas pejorativamente de CDFs, do latim cu de ferro, por desenvolverem traseiros duros como metal devido a longos períodos sentados estudando. E como gosto de jogar a vida no hard (nem sempre por opção) eu era um CDF.

E quando sua mente está em formação, você acredita ter apenas duas opções quando se sente excluído: ou procura se encaixar e muda a sua personalidade ou acha um lugar onde as pessoas não poderão te machucar mais. E no meu caso preferi continuar sendo eu mesmo e por incrível que pareça encontrei refúgio nos quadrinhos do Homem-Aranha.

Meu pai gostava e tinha muito gibis do Tex, Batman, Akira e Turma do Penadinho então era isso que eu tinha acesso do mundo dos quadrinhos. Obviamente conhecia todos os super-heróis populares, principalmente por conta das animações do Homem-Aranha, Liga da Justiça e dos X-Men que passavam na TV Globinho, apesar de não ler as HQs, mas isso estava prestes a mudar.

Quando eu tinha 10 anos meus tios precisaram se mudar para a África a trabalho e como eles podiam levar apenas o essencial herdei um tesouro do meu tio: a coleção de HQs do Homem-Aranha dele.

E essa foi a primeira vez que me enxerguei representado em alguma coisa que não fosse uma brincadeira maldosa de escola.

O Homem-Aranha que conhecia pela TV era um herói incrível, tinha poderes fantásticos, sabia lutar como ninguém e era muito engraçado, mas foi só nos quadrinhos que conheci e me identifiquei com Peter Parker, um rapaz assim como eu: franzino, CDF, sem grana e com autoestima baixa, para dizer o mínimo.

Obviamente não devo minha educação e moral à Marvel, isso seria além de absurdo um tanto quanto perigoso, afinal é assim que supervilões são criados. Mas em um momento de desamparo eu tinha alguém (mesmo que fictício) para me espelhar.

E hoje eu vejo que mesmo sem ter essa noção na época eu estava tendo a minha primeira lição de como a representatividade é uma ferramenta importante, principalmente para quem se sente à margem da própria vida.
E foi por isso que, mesmo não acompanhando quadrinhos há anos, eu fiquei extremamente feliz quando foi anunciado que um personagem negro e com raízes latinas chamado Miles Morales se tornaria o novo Homem-Aranha.

Imagine quantas crianças e adolescentes que acompanhavam quadrinhos em 2011 talvez estivessem em uma situação similar a que eu estava em 95, precisando se enxergar em algo que conversasse com elas e que as fizessem se sentirem parte de algo. O quão importante o personagem não foi e é até hoje para os milhares de jovens que sofrem preconceito por conta da cor da sua pele ou de suas origens?

O valor e o poder dele são imensuráveis e vão muito além de uma história de ficção.

Spider-Man: Miles Morales Black Lives

E é por isso que fico contente dessa vez com a decisão da Sony, em conjunto com a Marvel, em começar uma nova geração de videogames com um de seus carros chefes sendo um jogo que carrega uma bandeira de representatividade tão forte como no caso de Marvel’s Spider-Man: Miles Morales.

E além de tudo, por dar esse pontapé inicial com um jogo tão bom quanto esse.

Marvel’s Spider-Man: Miles Morales foi desenvolvido pela Insomniac Games e publicado pela Sony Interactive Entertainment e estará disponível para PlayStation 4 em 12 de novembro e para PlayStation 5 em 18 de novembro de 2020.

Vale mencionar que quem adquirir a versão de PS4 poderá baixar um upgrade gratuito para a versão de PS5 quando este for lançado. Então se você não for entrar agora na nova geração, mas quer se balançar por Nova York novamente pode comprar a versão para o console atual sem medo que além dela estar bem otimizada você terá esse incentivo quando pegar o bonde do ray tracing.

Com grandes poderes seja você mesmo

A Insomniac preparou uma recapitulação em vídeo dos eventos de Marvel’s Spider-Man antes do início de Miles Morales e ela funciona muito bem para relembrar como Miles entrou nesse mundo, tanto para quem jogou na época do lançamento e não se recorda mais de todos os detalhes como para jogadores que serão introduzidos ao universo do aracnídeo através desse título.

Mas em resumo, e sem entrar em muitos detalhes para evitar spoilers, existem 2 Spiders em Nova York depois dos eventos do último jogo. Peter continua as suas atividades como o herói principal, reconhecido como o grande amigo da vizinhança, mas agora tem a ajuda do jovem Miles Morales no combate ao crime.

Dessa forma, Peter é para Miles o mentor que ele nunca teve e é possível sentir a amizade forte que se formou entre os dois nesse último ano, mesmo através da pouca interação que eles tem no início do game.

Isso mesmo, os dois Aranhas tem pouquíssimo tempo de tela juntos devido a uma viagem que Peter precisa fazer para a Europa, o que deixa um Miles ainda muito inseguro a cargo da proteção da cidade.

Spider-Man: Miles Morales Peter Parker
Quem é você, meu camarada e por que tá usando a roupa do Pete?

Mas o que poderia acontecer de tão ruim nesse meio tempo enquanto aguardamos o retorno de Pete, não é mesmo?

E seria um jogo incrivelmente curto se uma ameaça atrás da outra não começassem a surgir para colocar Miles a prova.

Inclusive, esse é um ponto interessante em que é bom tocar o quanto antes: o game é mais curto que o primeiro jogo sim, mas, por outro lado, ele é bem mais dinâmico e direto.

Eu adorei o jogo de 2018 e acho que ele merece todos os prêmios que ganhou, porém várias atividades secundárias claramente existiam nele apenas para alongar a sua duração. Existem seções inteiras de missões da própria história que poderiam facilmente serem eliminadas e ainda assim não faria uma diferença tão grande para a narrativa.

Spider-Man: Miles Morales tem um ritmo muito próximo à perfeição. Você tem tempo para conhecer os personagens e desenvolver as suas relações interpessoais e o equilíbrio dessa parte essencial com a ação é fantástico.

A relação dos personagens é bem crível

A relação entre Miles, sua mãe, seu tio e seus amigos (e inimigos) é extremamente crível e eles tem um papel fundamental no desenvolvimento dele tanto como ser humano como herói e a história do game no geral é incrível e arrisco dizer que eu gostei mais dela do que da do primeiro jogo.

As missões principais têm a duração ideal e acontecem diversos eventos significativos em cada missão que realmente fazem a história avançar em uma cadência muito boa, direto ao ponto e sem muita enrolação.

Obviamente existem missões secundárias, missões do spider app (sim, agora as pessoas podem pedir socorro ao Teioso via aplicativo), desmantelamento de bases inimigas, colecionáveis e eventos de crimes gerados proceduralmente para permitir que o jogador aproveite o mundo aberto da cidade, mas a variedade e as recompensas para cada uma dessas atividades é bem melhor quando comparadas ao primeiro game.

Terminei a campanha de Miles Morales com mais ou menos umas 16 horas e 97% de todas as atividades disponíveis (o restante vai ficar para a minha segunda jogada quando for platinar), então ele está longe de ser um DLC de luxo como alguns pensaram quando o jogo foi anunciado.

O combate do Miles difere o suficiente do combate do Peter

A roupa certa para cair na porrada

O combate segue os mesmos princípios do jogo anterior em que o jogador pode usar várias sequências de combos, alternando entre gadgets, ataques diretos, desvios, contragolpes e itens dos cenários, bem inspirado no freeflow consagrado pela série de jogos Batman Arkham, o que eu particularmente acho ótimo. E apesar desse tipo de gameplay ter sido criado pela Rocksteady para a série da DC, o estilo de luta acrobática é muito mais “realista” quando usado pelo Cabeça de Teia.

E embora essa cadência de combate seja bem similar entre os games do Aranhaverso, os poderes bioelétricos de Miles são diferentes o suficiente para não cair na mesmice e parecer que estamos jogando o mesmo jogo com uma roupagem diferente.

Miles gera eletricidade com os seus ataques e essa energia pode ser concentrada e usada na forma de ataques especiais chamadas Ataques Venom, que tem vários efeitos diferentes sobre os inimigos, podendo desarmá-los ou paralisá-los durante um determinado espaço de tempo.

Spider-Man: Miles Morales invisível
Eu sou o Homem Invisível

Além dos ataques bioelétricos Miles também pode ficar invisível e utilizar essa mecânica para eliminar os inimigos com furtividade ou em situações em que precisa escapar rapidamente. A invisibilidade também é controlada por um medidor com tempo de recarga variável de acordo com o traje e as modificações equipadas.

E por falar em trajes, assim como no primeiro jogo, aqui eles representam um show a parte e podem ser conquistados como prêmios de missões e atividades secundárias ou adquiridos através do uso de recursos encontrados em baús especiais em conjunto com tokens recebidos através de desafios holográficos deixados por Peter para completar o treinamento de Miles.

Spider-Man: Miles Morales possui uma parte de desenvolvimento de personagem bem sólida também e são várias as opções de customização de equipamentos, trajes e habilidades e isso afeta significativamente a jogabilidade.

Um traje pode priorizar a geração de Energia Venom e ao combinar essa roupa com as habilidades que mais fazem uso dessa energia você pode criar um Miles que é quase um Super Choque ou talvez você prefira usar um traje que favorece a recuperação da energia de invisibilidade em conjunto com habilidades e gadgets de longa distância e investir em sequências mais sorrateiras de eliminação, por exemplo.

Spider-Man: Miles Morales traje animado
Apesar de gostar do traje padrão eu adoro o que simula um desenho animado

A escolha está nas mãos do jogador e o game te deixa livre para optar pelo melhor caminho. Por outro lado, como a árvore de habilidades não é muito grande eventualmente chegará um ponto em que essas escolhas pesarão menos visto que o jogador terá adquirido boa parte das modificações e trajes de qualquer forma.

E apesar de alguns confrontos exigirem um pouco mais de planejamento, na maior parte do tempo a intenção por parte da Insomniac não foi criar um game desafiador, mesmo nas maiores dificuldades, mas sim um título onde o desafio é jogar da forma mais bonita e acrobática possível. E isso sim dá um pouquinho mais de trabalho.

Um bom final/início de geração

Em se tratando de gráficos Spider-Man: Miles Morales é tão bonito como o primeiro jogo e em algumas animações faciais até mais bonito, mesmo que a intenção nunca seja ser foto realista. E eu só posso imaginar como devem estar de cair o queixo os efeitos elétricos dos poderes de Miles com ray tracing ativado e 4K no PlayStation 5 já que aqui eles já fazem um papel muito competente.

Uma dica que dou principalmente para quem estiver jogando em um PlayStation 4 básico como o meu: desativem ou diminuam até um nível confortável a opção de desfoque de movimento nas configurações. Não precisa me agradecer depois.

Spider-Man: Miles Morales hologramas
Os hologramas de treinamento que Peter deixou espalhados para Miles pela cidade

A trilha sonora casa bem com a identidade mais urbana de Miles e em alguns momentos as músicas orquestradas orquestradas são substituídas por músicas com vocais de artistas de jazz e hip hop, e como isso não existia no primeiro jogo, foi uma surpresa muito agradável quando aconteceu a primeira vez.

Eu sempre prefiro jogar no idioma original em que a obra foi concebida para ter uma melhor imersão, mas joguei metade do game com a dublagem em português e fiquei impressionado positivamente em como ela está entre uma das melhores que pude testar recentemente, não devendo nada para a dublagem original em inglês.

O destaque para as vozes em inglês para mim fica para as performances de Nadji Jeter como a voz do Miles e para o onipresente Troy Baker que faz um dos vilões.

Vale a pena?

Considerando que a versão de PS4 de  Spider-Man: Miles Morales não custa preço cheio no seu lançamento e que o jogador que adquirir o game agora leva “de brinde” a versão de PS5 gratuitamente quando (ou se) for comprar o novo console da Sony eu digo sem sombra de dúvidas que ele vale muito a pena, apesar de ser mais curto.

Eu só fico imaginando como isso vai estar lindo com RT ligado no PS5

É preciso levar em consideração que se você já está saturado de jogos de heróis ou se jogou muito recentemente o primeiro Marvel’s Spider-Man talvez esse pareça inicialmente um pouco mais do mesmo, mas garanto que ele é uma experiência muito mais direta e com um ritmo melhor que o primeiro, com uma história igualmente divertida e interessante.

É interessante observar que durante a história as pessoas pedem ajuda a Miles com um certo receio, inicialmente todos querem falar com o “outro Spider-Man” por ainda não confiar na capacidade do novo herói.

Isso vai mudando ao longo do game e a cada missão Miles começa a ser mais aceito e admirado pela comunidade, principalmente a comunidade local do Harlem. Essa é uma analogia perfeita e proposital feita pela desenvolvedora para mostrar aos jogadores que ainda estão desconfiados em relação ao personagem e ao jogo que eles podem confiar que ele vai dar conta do recado.

Talvez no começo você também quisesse um novo jogo do outro Spider-Man, mas quando conhecer esse novo vai ver que ele tem muito a oferecer e que é muito fácil reservar um espacinho no seu coração para ele.

Spider-Man: Miles Morales gato na mochila

A análise Marvel’s Spider-Man: Miles Morales foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do jogo.


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Papai Platina
(Pouco) conhecido como Willian. Marido, pai de três filhos maravilhosos, fã de Stephen King, filmes toscos e trophy hunter nas horas vagas. No Twitter como @papaiplatina e willianmarques na PSN.