Análise RoboCop: Rogue City (PS5)
RoboCop: Rogue City é uma aula de como adaptar uma franquia respeitando o material original, conservando sua relevância social e criando um jogo divertido.
Eu fui criança nos anos 90.
Isso significa que fui exposto a muita violência gratuita, sexo ou qualquer tipo de conduta imprópria para a minha idade que a televisão brasileira julgasse adequada para compor sua grade vespertina familiar.
Os pais dos anos 90 também pareciam não conhecer — ou ligar para — os conceitos de trauma ou classificação indicativa, então tudo que o Cinema em Casa ou a Sessão da Tarde colocassem na tela era o que as crianças iriam assistir e comentar na escola no outro dia.
Filmes como A Volta Dos Mortos Vivos, Porky’s, A Lagoa Azul, Mulher Nota Mil, Os Garotos Perdidos, O Vingador do Futuro e Elvira, a Rainha das Trevas, foram muito formativos e informativos mas, com certeza, eu não deveria ter acesso a nenhum deles quando criança. Eu assisti porque na década de 90 era diferente.
E um dos filmes que marcaram minha infância foi RoboCop – O Policial do Futuro, de 1987.
O primeiro RoboCop é um filme cheio de nuances com críticas ao capitalismo como responsável pela decadência social, ao jornalismo sensacionalista e corporativista e ao consumismo, além da alegoria religiosa da ressureição de Alex Murphy e a desumanização do indivíduo. Claro que eu não percebia isso com 10 anos de idade, então o que chamava a atenção era a violência nua e crua. E nisso, RoboCop era absurdamente visceral e magnético.
Com o passar dos anos e dezenas de reprises — algo normal para a época — todos esses detalhes ficavam mais evidentes e a cada ano RoboCop ficava um pouco mais profundo e ácido para mim. O filme era o mesmo, mas eu crescia como fã.
Então, quando RoboCop: Rogue City foi anunciado confesso que fiquei um pouco cético. Adaptações de filmes nem sempre (ou quase nunca) conseguem capturar a essência do material original, e geralmente acabam se tornando experiências rasas que só aproveitam o nome da franquia para vender algumas milhares de unidades.
Para minha surpresa, o game desenvolvido pela Teyon não só entrega uma experiência sólida como também consegue equilibrar perfeitamente ação, o humor e a crítica social que fizeram os dois primeiros filmes da franquia se tornarem clássicos cult. Inclusive, o enredo de Rogue City se passa entre o segundo e terceiro filme e, na minha opinião, tem uma história melhor que RoboCop 3 — o que convenhamos não era é tão difícil assim.
O estúdio polonês, responsável por Terminator: Resistance (2019), outro first person shooter baseado em uma franquia icônica dos anos 80, claramente aprendeu algumas lições importantes desde então e conseguiu criar aqui seu jogo mais consistente. E o primeiro acerto foi trazer de volta Peter Weller para dar voz a RoboCop. Como fã, não acho exagerado dizer que sem ele o game perderia muito do seu charme e da sua cadência.
Já a representação de personagens clássicos da franquia como sua parceira Anne Lewis, o Sargento Warren Reed, o apresentador Casey Wong, o Velho, ED-209 e o Prefeito Kuzak ajudam a dar um sentimento de continuidade e criam uma ancora que parece gritar: “essa é uma história no universo RoboCop que você tanto conhece e ama”, mas são os personagens criados exclusivamente para o jogo, como Picles, policial Washington, a psicóloga Olivia Blanche, o odioso Max Becker, a enxerida Samantha Ortiz e o vilão Wendell Antonowsky que roubam a cena e dão peso para a narrativa.
Antonowsky é a personificação perfeita do vilão de filme dos anos 80, e não acho que seja coincidência a aparência dele remeter tanto a Hans Gruber, de Duro de Matar — é, na minha opinião é mais do que isso: é uma homenagem.
Mas nem só de nostalgia vive esse ciborgue. RoboCop: Rogue City consegue discutir temas complexos como a desvalorização da vida humana em uma sociedade capitalista predatória através da própria existência do seu protagonista: um policial que mesmo depois de morto em serviço continua tendo que trabalhar para a OCP (Omni Consumer Products).
A Detroit de Rogue City é um reflexo perfeito dessa distopia corporativa: enquanto a criminalidade descontrolada assola os bairros pobres da cidade, a OCP promete um futuro utópico com a construção de Delta City, um paraíso urbano planejado que, convenientemente, só será acessível para os mais abastados. O contraste entre essas duas realidades é tão atual quanto assustador.
Em matéria de narrativa o game não economiza no humor cáustico característico da franquia. As propagandas da OCP espalhadas pela cidade, os comerciais na TV e principalmente os diálogos são recheados daquela ironia cortante que fez o filme original se tornar uma obra-prima da sátira social. E tudo isso enquanto você explode criminosos com a icônica Auto-9 em sequências de ação extremamente satisfatórias.
A história principal é meio manjada, principalmente para quem conhece os filmes e sabe como funciona a OCP, mas é contada em um ritmo tão bom que ela até parece melhor do que é, e existem até algumas surpresas bem escondidas que não vou comentar para não estragar sua experiência.
E mesmo que algumas missões secundárias pareçam ter sido criadas só para aumentar o tempo de jogo, como aplicar multas em carros estacionados na frente de hidrantes, a grande maioria merece destaque pela qualidade do texto e pelo desenvolvimento da sua relação com os personagens secundários.
Elas expandem a narrativa principal e ajuda a construir esse mundo distópico onde corporações têm mais poder que o governo e a vida humana vale menos que o lucro do próximo trimestre fiscal. Não espere o nível de texto e as consequências de um Witcher 3 da vida nessa parte, mas também não deixe de tentar encontrar o máximo delas ao longo do caminho, algumas tem diálogos hilários e eu me peguei dando boas gargalhadas em vários momentos.
Mas talvez o ponto que mereça mais destaque — além do visual que me surpreendeu bastante pela qualidade — é a jogabilidade. Ela é pesada, metódica e traduz perfeitamente os movimentos robóticos do protagonista vistos nos filmes. Diferente de outros FPS modernos onde o protagonista se move como um atleta olímpico entupido de esteroides, aqui cada passo tem peso. Murphy não é ágil, mas é implacável — exatamente como deve ser.
Existem habilidades que melhoram a resistência a dano, aumentam a capacidade de detecção de ambiente, que permitem abrir novas opções de diálogos, que criam um escudo temporário ou mesmo um impulso que pode ser usado defensiva ou ofensivamente, além de várias outras que dão um senso de progressão que — apesar de não ser exatamente necessário já que você é basicamente um tanque de guerra — funcionam como recompensas extras bem interessantes que não deixam o jogo cair na monotonia.
Circuitos impressos da OCP encontrados pelo cenário também permitem alterar o funcionamento da Auto-9, modificando seu dano, cadência, perfuração de armadura, aumentando a capacidade do carregador ou mesmo negando totalmente a necessidade de recarregamento. Como Rogue City é bastante linear, encontrar esses circuitos é mais um método orgânico de incentivar a exploração.
Para compensar um pouco a simplicidade do gameplay de tiro os desenvolvedores inseriram uma mecânica de investigação (que faz muito sentido para o trabalho de um policial) que remete bastante aos jogos da série Batman: Arkham, e que também funciona muito bem para quebrar o ritmo entre as partes de ação.
O game é cheio desses pequenos detalhes e mecânicas auxiliares que somam muito bem ao todo.
Vale a pena?
RoboCop: Rogue City foi uma grande surpresa. Como fã eu esperava gostar, mas não esperava gostar tanto. Ele é um bom exemplo de que é possível criar adaptações fiéis de franquias consagradas mesmo sem o orçamento de um jogo AAA, basta conhecer e, principalmente, ter carinho e respeito pelo material de origem.
E isso transparece a cada segundo aqui, desde o menu, com uma versão que toca automaticamente do tema clássico de Basil Poledouris, até o momento que os créditos sobem, Rogue City é uma verdadeira aula de como construir um jogo moderno do RoboCop.
Como diria o próprio Homem de Lata: “Vivo ou morto, você vem comigo!”. E nesse caso, você vai querer ir por vontade própria.
A análise de Robocop: Rogue City foi escrita através de uma cópia de PlayStation 5 gentilmente cedida pelos nossos parceiros da Nuuvem, e você pode adquirir o jogo com um desconto especial clicando aqui.