Análise Tails of Iron (PS4 e PS5)
Tails of Iron é um RPG de ação e aventura que esbanja charme na sua direção de arte e garante momentos épicos com seu combate desafiador.
O Herói de Mil Faces talvez seja um dos livros mais influentes para cultura pop moderna, e mesmo que você não o conheça, com certeza já teve contato com os conceitos narrados nele.
No livro, Joseph Campbell teoriza sobre a estrutura do Monomito, também conhecido como Jornada do Herói, onde um protagonista recebe um chamado para uma aventura repleta de desafios e que colocarão à prova seu caráter, convicções e capacidades, mas que, por conta das lições aprendidas e provações enfrentadas durante essa jornada, consegue triunfar diante do perigo e retornar como um herói.
É importante notar que as bases do que Campbell agrupou sobre o termo Jornada do Herói existem há milhares de anos nos mitos repassados através da tradição oral, ou em obras como Odisseia e O Asno de Ouro, ou ainda nas próprias raízes de religiões e crenças, como Budismo e Cristianismo, por exemplo. O trabalho do autor foi enumerar os pilares que constituem o cerne desse tipo de narrativa.
E fazendo isso, ele criou um manual para criação de histórias, estudado e usado até hoje por diversos autores nos mais variados tipos de mídia, sejam elas épicos de fantasia como Star Wars, Dungeons and Dragons e Harry Potter, ou passando por histórias mundanas sobre amadurecimento (ou coming of age, do inglês) como Conta Comigo, As Vantagens de Ser Invisível e O Clube dos Cinco.
E Tails of Iron, da desenvolvedora Odd Bug Studio, é a tradução perfeita da jornada do herói clássica, porém com um protagonista que dificilmente associaríamos a atos heroicos: um rato.
A história acompanha as aventuras do príncipe Redgi, o menor e mais jovem dos filhos do Rei Rattus, que após uma invasão do Clã dos Sapos vê sua vida mudar drasticamente. Após a derrota de seu pai e captura de seus irmãos, ele se encontra na posição de assumir a coroa em meio aos escombros de um reino brutalmente destruído não só pelos sapos do exército de terrível Verruga Verde, como por outras tribos guerreiras, como os Besougros (besouros ogros), Mozquitos (com Z mesmo) e outros inimigos.
A narrativa sobre guerras entre reinos de animais antropomorfizados não é novidade, mas é muito bem executada aqui, Os livros da série Redwall, O Vento nos Salgueiros e as HQ’s de Mouse Guard tratam de assuntos similares e serviram de inspiração para a construção da história excelente de Tails of Iron, conforme divulgado pelos próprios desenvolvedores.
Além dessas influências, e apesar do bom-humor geral do título, algumas vezes ele aborda temáticas mais sombrias, uma inspiração clara dos contos de fadas dos Irmãos Grimm, que eram mais crus e sanguinários que suas versões americanizadas made by Disney.
Outros pontos que ajudam no desenvolvimento de uma ambientação crível, e que tornam a história cativante, são a sua trilha sonora bem orquestrada e a narração excepcional feita por Doug Cockle. Talvez você não reconheça esse dublador por nome, mas, com certeza, conhece o personagem mais famoso que ele interpreta: Geralt de Rivia, da série Witcher. Sim, o dublador (da versão em inglês) do Bruxeiro é o narrador das aventuras de Redgi e faz um ótimo trabalho, como mencionado. Senti falta de convites para jogar Gwent, mas entendo o porquê de não ter sido possível.
Vale ressaltar que o game está totalmente localizado em português do Brasil, então dessa forma mesmo quem não domina o inglês vai poder aproveitar sua história. Algumas piadas com o nome dos personagens ou o jogo entre as palavras Tails (caudas) e Tales (contos) são perdidas na tradução, mas outras sacadas da equipe de localização geraram bons substitutos, como o chefe Stabba Stabba, uma corruptela de Stab Stab (Facada Facada) que em português ficou como Perfuh Raddor.
E se a qualidade da narrativa já é um ponto muito positivo, é no combate e na direção artística que Tails of Iron se destaca no mar de jogos indies com estruturas similares.
O combate segue a estrutura cadenciada de um souls-like, já que é preciso estar atento ao padrão de golpes dos inimigos para atacar, contra-atacar, defender e desviar nos momentos certos. E a forma com que esses padrões são apresentados faz com que o gameplay seja didático e torne simples a tomada de decisões e reações. O que, de forma nenhuma, deixa o combate menos desafiador, principalmente em alguns chefes.
Um ataque com um indicador branco pode ser defendido, enquanto uma sinalização em amarelo significa que é possível aparar o golpe e realizar um contra-ataque; já indicadores vermelhos significam a necessidade de esquivar, o sinal padrão diz ao jogador que uma única esquiva é suficiente, contudo o aviso em forma de círculo indica que o ataque será em área, e, portanto, é preciso desviar duas vezes.
As lutas são muito orgânicas é fáceis de entender, e contam com influências leves de Hollow Knight e acentuadas de Salt and Sanctuary. Redgi pode usar golpes simples com armas de uma mão, ataques carregados com as armas de duas mãos, que conseguem quebrar a defesa dos inimigos, e ataques à longa distância, com flechas ou armas de fogo. Além disso, a partir de um certo ponto no jogo é possível imbuir suas armas com veneno, o que ajuda muito a aumentar o dano causado.
Um detalhe importante é que aqui não existe uma barra de estamina que limite seus ataques. O que impede que o game se torne um hack’n slash é justamente a cadência dos golpes dos inimigos, visto que até os mais fracos podem surpreender o jogador dependendo da quantidade ou variações de inimigos em uma mesma arena. A estratégia é totalmente diferente quando, por exemplo, é preciso lidar ao mesmo tempo com um adversário mais rápido e leve de um lado e um mais pesado munido de escudo de outro.
Para ajudar no acerto de contas, Redgi tem à disposição uma variedade de armas de uma e duas mãos, como lanças, espadas, machados e martelos, cada qual com sua movimentação e distâncias de ataques específicas, e que funcionam de formas diferentes para cada tipo de inimigo. Já as armaduras podem ser leves, médias ou pesadas, e cada uma tem dois status de defesa, uma geral e uma contra um tipo de animal específico.
Uma armadura com especificidade para besougros pode ter as duas defesas altas, mas será de pouca ajuda ao enfrentar a Rainha dos Mozquitos, por exemplo, sendo recomendado neste caso escolher uma que proteja Redgi contra mozquitos, mesmo que se defesa geral seja menor.
É possível ainda aumentar a barra de vida de Redgi encontrando certos ingredientes e os entregando para que seu irmão chefe de cozinha os prepare após a reconstrução de algumas áreas do seu castelo. É necessário então explorar os cenários e completar algumas sidequests que são oferecidas por NPCs ou através dos quadros de recompensa.
A estrutura das missões secundárias é a minha única crítica a Tails of Iron. Achei a variedade delas praticamente inexistente e não poder ativar mais de uma de um mesmo quadro ao mesmo tempo me fizeram perder um tempo desnecessário entre idas e vindas, visto que, na maioria das vezes, elas se limitavam a uma mesma área geográfica e a uma mesmo tipo de ação, seja acabar com uma infestação de alguma praga ou impedir a invasão de um tipo de inimigos.
No quesito dificuldade, eu classificaria Tails of Iron como moderado. Existem combates mais desafiadores em determinados cenários, e é possível que você morra algumas vezes neles, mas com os equipamentos certos e um pouco de perseverança é possível superar qualquer desafio.
De toda forma, apesar de não existir uma opção de escolha de dificuldade, a quantidade e a distância entre checkpoints é abundante, e em quase todos esses pontos de controle é possível mudar seu equipamento para se adequar melhor ao tipo de inimigo daquela área, reabastecer munições e encher o seu frasco de cura, que também pode ser recuperado ao saquear inimigos mortos.
Não me recordo se esse frasco de cura tem um nome como estus flask ou frasco de sangue, mas apelidei ele de besouro-suco, e é uma pena esse não ser o nome oficial. Acho que os executivos da Warner Bros. não se importariam com a homenagem. Ou talvez sim.
Já sobre a direção de arte, ela não é nada menos que fenomenal. A quantidade de detalhes nos cenários impressiona e os gráficos cartunescos em 2D são lindamente desenhados à mão. As cores vivas e traços grossos dos contornos, tanto de personagens como do ambiente, são influenciados pela arte das tapeçarias e entalhes em madeira característicos de regiões do Leste Europeu, o que dá a ele um tom ainda mais próximo a um conto de fadas que não tem medo de se tornar sombrio às vezes.
Diante de tudo o que foi exposto aqui, recomendar Tails of Iron é um tarefa simples. Ele não é só um dos melhores RPGs souls-like, como também um dos jogos indies mais charmosos lançados nos últimos anos e uma Jornada do Herói fantástica.
A análise de Tails of Iron foi escrita com base em uma cópia de review gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do game. Também disponível para Nintendo Switch, PC, Xbox One, Xbox Series S e X.